Além da teoria

Além da teoria

O papel do pastor no processo do discipulado

“A última instrução dada por Jesus aos discípulos foi: ‘Ide, […] fazei discípulos de todas as nações’ (Mt 28:19; cf. At 1:8). Assim como Cristo foi enviado ao mundo pelo Pai, do mesmo modo Ele enviou Seus discípulos (Jo 20:21). […] Os membros da igreja foram chamados a sair do mundo para serem enviados de volta ao mundo com uma missão e uma mensagem.”1 Em outras palavras, o discipulado deve ser vivido em meio ao mundo.2 Além disso, “o discipulado de Jesus não é a recompensa para alguns por um comportamento especial, mas sim […] o mandamento divino [que] abrange a todos os cristãos”.3

Seguir a Cristo na condição de um crente “normal”, “comum”, é muito diferente do que estar com Ele na condição de um verdadeiro discipulador.

O que discipulado não é

Para entender claramente o significado de discípulo/discipulado, é importante compreender o que discipulado não é.4 Em primeiro lugar, discípulo/discipulado não é um programa; ou seja, não é simplesmente um currículo que deve ser aprendido. De fato, ele é fundamentalmente a escolha de seguir a Jesus, e envolve um modo de viver por toda a vida. Assim, não pode ser reduzido a requisitos a ser cumpridos. Podemos aprender boas técnicas e habilidades com esse intuito, mas elas são ferramentas, e não o processo em si.

Além disso, discípulo/discipulado não é uma linha de produção. Não podemos pensar em produzir discípulos por atacado. Ao contrário, o discipulado é um processo lento, pois requer acompanhamento, e envolve mudança gradual. No discipulado, uma pessoa discipula outra, ou um grupo muito pequeno de discípulos. Ou seja, não dá para discipular muitos ao mesmo tempo.

Na sequência, discípulo/discipulado não é apenas para recém-convertidos. O discipulado é para toda a vida, pois nunca podemos deixar de orar, estudar a Bíblia, memorizar as Escrituras ou ter momentos devocionais. Todo aquele que se entregou e se entrega a Jesus Cristo diariamente deve viver esse processo.

Finalmente, discípulo/discipulado não é apenas para líderes. Infelizmente, a história do cristianismo nos mostra que muitas vezes o treinamento espiritual foi exclusividade de líderes espirituais. Contudo, a Reforma Protestante mudou essa ideia, resgatando o conceito bíblico de que todos os que seguem a Jesus Cristo são ou devem ser discípulos, sem restrições.

O que discipulado é

Entre os hebreus, no Antigo Testamento, o termo para discípulos era talmidim, e indicava “aqueles que seguiam algum rabino específico e sua escola de pensamento”.5 No Novo Testamento, há várias palavras que se relacionam com discípulo ou discipulado. Uma delas é akoloutheo (seguir), a qual “indica a ação de um homem que responde à chamada de Jesus, e cuja vida recebe novas diretrizes em obediência”.6

Outro termo é opiso, e pode ser traduzido como “ir atrás de alguém”, significando “participar da comunhão, da vida e dos sofrimentos de Cristo”.7 Entender o discipulado como “ir atrás de alguém” nos faz compreender que o autêntico discípulo de Jesus não pode e não deve olhar para trás, como que lembrando e sendo refém das experiências do passado. Sua vida deve ser vivida na perspectiva do futuro ao lado de Deus, sem considerar e valorizar demasiadamente aquilo que ficou para trás.8

O principal vocábulo grego traduzido como discípulo é mathetes, usado nos Evangelhos para referir-se a um seguidor de Jesus, um aprendiz, alguém comprometido com Cristo.9 Portanto, um discípulo “é alguém que ouviu o chamado de Jesus e se torna Seu seguidor”.10

Como discipular as pessoas? 

Jesus Cristo considerava o discipulado como estilo de vida, o método eficaz para a pregação do Evangelho. Isso pode ser esboçado da seguinte maneira:11

“Venha e veja” – Nesse estágio, o objetivo é despertar o interesse das pessoas para uma vida cristã autêntica. Reunir, expor, interessar e inspirar: essas são palavras que definem a primeira etapa.12 Podemos integrá-las assim: Os cristãos se reúnem para expor, na prática, como se vive o cristianismo. Desse modo, o interesse dos convidados é despertado, inspirando-os a se tornarem cristãos autênticos.

No início do processo discipulador, precisamos contar aos “curiosos” e interessados por que somos cristãos, o que nos levará à essência de nosso cristianismo. Entretanto, não devemos fazer isso meramente com um bom discurso elaborado. Devemos convidá-los a conhecer-nos mais de perto. “Venha e veja”, esse deve ser nosso convite. As pessoas precisam ver como adoramos na igreja, como fazemos evangelismo, como nos reunimos em pequenos grupos ou como fazemos culto de pôr do sol. Elas precisam perceber também que somos sociáveis, que vivemos a religião em todos os âmbitos da vida, por exemplo, em atividades esportivas ou em nosso ambiente de trabalho.

“Venha e siga-Me” – Havendo despertado a curiosidade e o interesse das pessoas em relação à vida cristã, o objetivo desse estágio é ensiná-las e ajudá-las a viver o cristianismo. Essa fase pode ser desafiadora porque o ser humano, de modo geral, não gosta de sair do conforto. A etapa anterior pode ser muito confortável: é fácil “vir e ver” sem nenhum compromisso, como convidado e curioso, sem ter que tomar decisões. Contudo, “vir e ver” não é suficiente, é necessário viver.

Daí que, quando confrontadas a tomar uma decisão em favor de Cristo, algumas pessoas podem reagir com desconfiança e desagrado. Outras podem simplesmente nunca mais voltar à igreja, ou não atender qualquer convite que tenha que ver com religião, espiritualidade e Deus. Afinal, seguir a Cristo implica abandonar hábitos, princípios e a cosmovisão. E isso mexe com qualquer um.

Por outro lado, a pessoa que “veio e viu” pode ter sido impressionada por aquilo que observou e, tocada pelo Espírito Santo, pode concluir em seu coração que essa é a vida que sempre buscou. Ao pensar assim, ela deseja voltar mais vezes, demonstra interesse em aprender mais sobre a Bíblia e quer viver como a igreja vive. O fato é que essa impressão positiva ocorre com muita frequência, o que é demonstrado pelo crescimento numérico da Igreja Adventista. Pela graça de Deus, as pessoas sentem-se acolhidas em nossas congregações, pequenos grupos e outros espaços, e seu interesse é despertado, sendo inspiradas a viver como cristãos autênticos.

“Venha e fique comigo” – Esse estágio destaca uma ação fundamental: fazer. Mais do que apenas saber, os discípulos devem fazer. O Mestre sabia da importância disso na transformação de um discípulo em discipulador. Em Marcos 3:13, 14, é-nos dito que Jesus escolheu “doze para estarem com Ele e para os enviar a pregar”. Mateus, por sua vez, registra as seguintes palavras de Cristo: “A seara, na verdade, é grande, mas os trabalhadores são poucos. Rogai, pois, ao Senhor da seara que mande trabalhadores para a Sua seara” (9:37, 38).

Os versos acima apresentam três princípios fundamentais na formação de um discipulador.

É necessário que passemos tempo com Jesus Cristo: Ele escolheu “doze para estarem com Ele” (Mc 3:13). “Estar com Ele” é o segredo de uma vida de influência, de testemunho eficaz. É o segredo para um discípulo se tornar discipulador. E o que significa estar com Jesus? Significa dedicar tempo à vida devocional: estudar a Bíblia, orar e refletir. Nesse sentido, o Salmo 119:48 afirma: “Os meus olhos antecipam-se às vigílias noturnas, para que eu medite nas Tuas palavras.”

É necessário preparo sólido e constante: O segundo princípio é o preparo, pois, como disse Jesus, a seara é grande, está madura (Mt 9:37, 38), e os discípulos precisam agir. Entretanto, eles devem atuar da melhor maneira; afinal, não se pode encarar com displicência a missão de ser embaixadores de Cristo na Terra (2Co 5:20).

É necessário envolver-se na missão: o terceiro princípio fundamental na formação de um discipulador é cumprir a missão, envolvendo-se nas ações planejadas pela igreja. Em Marcos 3:13, 14 é-nos dito que Jesus escolheu “doze para estarem com Ele e para os enviar a pregar”. Esse, portanto, é o ápice do processo discipulador: envolver-se na missão.

“Venha e permaneça em Mim” – Nesse estágio, o discipulador compreendeu plenamente a necessidade de permanecer em Cristo. Isso passa a ser prioridade em sua vida, e seus frutos evidenciam que ele está conectado diariamente à Fonte. Uma vez que o discipulador vive em comunhão com Jesus, o envolvimento na missão é uma consequência. Entretanto, ele faz mais do que cumprir a missão: torna-se um professor ou professora, ensinando outros a serem discípulos. Com o tempo e a experiência, além de discipular, é capaz de ensinar a outros o processo discipulador.

Agora ele conduz os membros ao envolvimento com as atividades internas e externas da igreja. O que determina quem fica com um ou outro tipo de serviço? Um aspecto decisivo é o próprio dom do discípulo, pois alguns se sentem mais confortáveis e melhor capacitados para o ministério dentro da igreja, como professores da Escola Sabatina, membros da equipe de louvor, conselheiros do Clube de Desbravadores, entre outras atribuições. Outros preferem ministérios direcionados para fora da igreja, como visitar interessados, cuidar de uma classe bíblica ou dirigir um pequeno grupo.

Conclusão

O testemunho de Deus sobre Davi está em Atos 13:22. O Senhor poderia ter dito: “Acho que Davi é um grande militar”; “acho que Davi é um grande guerreiro”; “acho que Davi é um grande rei”, ou “acho que Davi é um grande e fiel pastor”. Contudo, Deus entendeu que nenhuma dessas afirmações seria adequada para se lembrar de Davi. Por isso, Ele resolveu afirmar: “Achei Davi para se importar com as coisas com as quais Eu me importo. Afinal de contas, o coração de Davi bate em sincronia com o Meu.” O coração do rei era totalmente do Senhor. Davi era um homem segundo o coração de Deus.

Discípulos e discipuladores são assim: Seu coração bate em sintonia e em sincronia com o coração de Deus. Eles se interessam por aquilo que Lhe interessa. Acima de tudo, o coração deles não está dividido: pertence inteiramente ao Senhor.

Com gente assim, Deus é capaz de revolucionar o mundo. É isso que Ele quer. Por isso, não basta ser batizado; temos que viver o discipulado!

Referências

1 Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia (Tatuí, SP: CPB, 2011), p. 610.

2 Dietrich Bonhoeffer, Discipulado (São Paulo: Mundo Cristão, 2016), p. 24.

3 Ibid., p. 23.

4 Bill Hull, The Disciple-Making Pastor: Leading Others on the Journey of Faith (Grand Rapids, MI: Baker Books, 2007), p. 35-41.

5 Russell Norman Champlin, Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia (São Paulo: Hagnos, 2002), p. 181.

6 Lothar Coenen e Colin Brown (org), Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento (São Paulo: Vida Nova, 2000), p. 578.

7 Ibid., p. 590.

8 Ibid.

9 Bill Hull, The Complete Book of Discipleship: On Being and Making Followers of Christ (Colorado Springs, CO: NavPress, 2006), p. 32.

10 Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p. 578.

11 Esta seção foi adaptada de The Disciple-Making Pastor.

12 Hull, p. 273.