O primeiro presente de Deus

O primeiro presente de Deus

           

                 Depois de completada a criação de todos os elementos, numa ordem de desenvolvimento de complexidade, DEUS se dirige aos seres viventes, especificamente ao ser humano, e lhe dá alimento. A primeira dádiva divina à criatura é comida. A Bíblia diz assim:

“E disse Deus: Eis que dou para vocês toda a planta que produz semente que está sobre a face de toda a terra, e toda a árvore com seu fruto que produz semente; para vocês será por comida; e para toda vida da terra e para todo voador do céu e para todo que se arrasta sobre a terra, que nela é alma vivente, toda erva verde para comida. E assim foi”. (Gn. 1:29-30, tradução própria)

 

O que Deus dá e para quem

Esse texto carrega uma construção simples, mas pelo seu tamanho, acaba por confundir alguns. Em primeiro lugar, o que Deus dá é introduzido por um verbo, nātan (נָתַן) que é seguido por preposição e sufixo pronominal de identificação – para vocês (lāḵem) – indicando que o discurso se dirigia ao ser humano, macho e fêmea, criados imediatamente antes disso (1:26-28) e então pelo complemento de objeto direto, ou seja, o que é dado. Depois, no verso 30, o narrador introduz uma nova identificação do discurso, os outros seres vivos e toda a alma vivente e um novo complemento do objeto direto. Quando se presta a atenção a construção, podemos simplificar dizendo que Deus deu três tipos de comida – plantas que produzem semente, árvores que tem fruto que produz semente e erva verde – para dois grupos de comedores – o ser humano e os outros seres viventes.

Alguns enxergam que há uma diferença do alimento dado ao homem daquele dado aos animais, ou seja, o humano não deveria comer erva verde. Acrescentam a discussão a expressão “sobre a face da terra” para comentar que o alimento dado ao homem não deveria estar debaixo da terra e sim acima. A segunda ideia é bem simples de ser rebatida, pois, literalmente, a expressão está no plural construto, ou seja, “faces da terra” seria a tradução mais acertada. No caso, pānîm (פָּנִים), sempre aparece no plural e indica não somente a superfície de algo, mas o que compõe aquela superfície, por isso o plural.

A primeira ideia precisa ser confrontada com outros elementos. Em Gênesis 2:5 a expressão “planta do campo” (ʿēśeḇ haśśādeh) aparece para dizer o que a terra ainda não havia produzido antes de haver homem e chuva e depois só reaparece após o pecado, em Gênesis 3:18. Entre essas aparições, Deus regulamenta a alimentação do homem em Gênesis 2:16-17, aqui apenas apontando o produzido pelas árvores como comida. No capítulo 2, diferente do capítulo 1, não há detalhamento de alimentos comestíveis e nem dos irão comer, pelo contrário, o que é detalhado é o que o homem não poderia comer (2:17).

Ao comer o que não deveria comer, que se constituiu no primeiro pecado da humanidade, no discurso punitivo divino ao primeiro casal, Deus diz que eles agora irão comer a “planta do campo” (Gn. 3:18). Ao ser analisada, a expressão “planta do campo”, pode-se concluir que é uma referência genérica a tudo que é produzido pela terra e não uma referência a “erva verde” (yereq ʿēśeḇ) de Gênesis 1:30, até porque são expressões diferentes.

Em Gênesis 9, após o dilúvio, Deus mais uma vez vai regular a alimentação da criação, e assim está escrito: “Todo o que se arrasta e que vive, para vocês será comida, como a erva verde eu dei para vocês, tudo, menos a carne com sua alma, seu sangue, não comerás” (Gn. 9:3-4, tradução própria). Ou seja, ao descrever a alimentação permitida aqui, Ele libera o consumo cárneo (regulamentando a questão do sangue) e aponta a erva verde como uma espécie de primeira regulamentação! Basicamente, Deus diz que como Ele havia dado a erva verde (yereq ʿēśeḇ), agora Ele dava a carne. Aqui a expressão é a mesma de Gênesis 1:30, o que reforça a interpretação anterior, de que eram três tipos de comida para dois tipos de comedores, sem uma delimitação clara de restrição. Gênesis 9:3-4 deixa claro que Deus havia dado a erva verde para o homem anteriormente e isso ocorre apenas em Gênesis 1:30.

 

Comida é graça

Voltando a Gênesis 1:29-30, texto foca em um aspecto crucial: o importante não é o alimento em si, mas a dádiva de Deus! Ou seja: o centro, no caso, é que é Ele quem dá e não especificamente o que ELE deu. Assim, o narrador, Moisés, assevera uma faceta a mais sobre a comida: é Deus quem legisla sobre ela. Esse conceito não só se repete em Gênesis 2:16-17, 3:18, 9:3-4, como também em Êxodo 16 (Dt. 8:3 e 29:6 trazem nuances interessantes), Levítico 11, etc.

Por fim, há uma diferença vital entre esse primeiro presente, a comida, no relato criativo de Gênesis e a comida nos relatos mesopotâmicos, especialmente o Enuma Eliši. Após vencer a batalha contra a deusa Tiamat, Marduk usa o corpo dela para criar os céus e a terra. O sangue de Kingu, outro deus derrotado, é usado para criar um aborígene. Esse aborígene será o responsável por construir um lugar de descanso, ou seja, um templo para Marduk. Ao finalizar esse templo no sétimo dia, esse aborígene irá então levar comida a Marduk e aos outros deuses.

A comida, no relato babilônico, é algo oferecido pelo ser criado aos deuses, como presentes pela grandeza deles. Na Bíblia, a comida é oferecida por Deus ao ser criado, como um presente a ele, sinal de Sua grandeza e graça. Esse paralelo aponta uma realidade importantíssima e central: a comida nunca foi e nunca será sinal do que se faz para Deus. Ela, a comida, era e sempre será o sinal do que Ele fez por nós. A comida é um sinal de Sua graça e não de nossas obras.

Não à toa, Jesus afirmou categoricamente: “Quem comer a minha carne e beber o meu sangue tem a vida eterna, eu o ressuscitarei no último dia. Pois a minha carne é verdadeira comida, e o meu sangue é verdadeira bebida. Quem comer minha carne e beber o meu sangue permanece em mim, e eu, nele” (João 6:54-56).

O alimento foi Seu primeiro presente, é Seu maior presente no sacrifício de Jesus e será Seu primeiro presente na nova Jerusalém (ver Mateus 26:29 em paralelo com Apocalipse 19:9; 22:14 e 17, por exemplo).

 

Bibliografia

EVEN-SHOSHAN, Abraham. A New Concordance of the Old Testament: using the Hebrew and Aramaic text. Jerusalem: Kiryat Sefer Publishing House, 1989.

KOEHLER, Ludwig; BAUMGARTNER, Walter. The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament: student edition. 2 vols. Leiden: Brill, 2001

LEITHART, Peter J. Blessed are the Hungry: meditations on the Lord’s supper. Moscow, ID: Canon Press, 2000.

MATHEWS, Victor H.; BENJAMIN, Don C. Old Testament Parallels: laws and stories from the Ancient Near East. New York: Paulist Press, 2006.

Perfil do autor Possui graduação em Teologia e Letras pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP), especialização em Teologia Bíblica também pelo UNASP e mestrado em Letras (Estudos Judaicos) na Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é professor de ensino superior do UNASP, doutorando em Letras (Estudos Judaicos) na USP e coautor do site www.terceiramargemdorio.org.