“Eis que ponho na tua boca as Minhas palavras” (Jr 1:9)
Qual é a história que você conta, quando interrogado sobre os motivos pelos quais ingressou no ministério pastoral? Talvez, relate agradecido que, por ocasião do seu nascimento, seus pais o dedicaram a Deus e assumiram com Ele o compromisso de educá-lo para ser pastor. Então, teve a infância direcionada a esse propósito, com professoras dos departamentos infantis da igreja descobrindo e burilando seus talentos, e você mesmo se projetando na imagem dos pastores que ia conhecendo.
Quem sabe, foi nos dias em que estudou no internato que você teve despertado o ideal pastoral, impressionado que ficou ao observar a conduta de um piedoso professor, ou depois de sentir aquele toque especial durante uma inspiradora semana de oração. Acaso, teria sido o final feliz de uma crise existencial, durante a juventude ou adolescência, que abriu diante de você o caminho em direção ao pastorado? Pastores de sua família o inspiraram? Houve em sua vida algum acontecimento comparável à manifestação de “um grande e forte vento”, “terremoto”, “fogo”, ou apenas “um cicio tranquilo e suave” (1Rs 19:11, 12)?
É certo que cada um de nós tem uma história relacionada à decisão de ser pastor; mas, tão certo como essa história existe, Deus tem que ter estado por trás dela. Se isso não tiver acontecido, não houve chamado divino; simplesmente porque a iniciativa do chamado é de Deus. “Ninguém, pois, toma esta honra para si mesmo” (Hb 5:4). Judas é um triste exemplo de alguém que tentou usurpá-la. “Enquanto Jesus estava preparando os discípulos para sua ordenação, um que não fora chamado se esforçou para ser contado entre eles. Foi Judas Iscariotes, que professava ser seguidor de Cristo. Adiantou-se então, solicitando um lugar nesse círculo mais íntimo de discípulos”.[1] A história mostra que a grande motivação desse discípulo foi o interesse pelo ganho financeiro e político, o que o levou a um trágico fim.
Possivelmente, sem a clara e inamovível convicção nutrida por aqueles que são chamados por Deus, depois de ter sido colaborador do apóstolo Paulo, “Demas, firme por algum tempo, abandonou mais tarde a causa de Cristo… Por ganho mundano trocou Demas toda alta e nobre consideração”.[2] Dividido entre a causa e o interesse pessoal, finalmente, “desanimado pelas densas nuvens de dificuldades e perigos, abandonou o perseguido apóstolo”.[3]
Escolha e promessas
Porém, ao contrário desses, destaca-se Jeremias como um dos muitos notáveis exemplos de homens que, embora reconhecendo a própria incapacidade diante da tarefa que lhes foi proposta, deixaram-se tocar pelo Senhor, aceitaram o chamado e se entregaram ao cumprimento dos propósitos divinos. Nascido em Anatote, no lar do sacerdote Hilquias, ainda jovem, com aproximadamente vinte anos recebeu o chamado para o ministério profético, no 13o ano do reinado de Josias.
A condição prevalecente entre o povo de Deus era desafiadora: “Por quarenta anos, Jeremias devia estar diante da nação como testemunha da verdade e da justiça. Num tempo de apostasia sem paralelo, ele devia exemplificar na vida e no caráter a adoração do verdadeiro Deus. Durante o terrível cerco de Jerusalém, ele seria o porta-voz de Jeová. Prediria a queda da casa de Davi, e a destruição do belo templo construído por Salomão. E quando aprisionado por causa de suas destemidas afirmações, devia ainda falar contra o pecado nos altos. Desprezado, odiado, rejeitado dos homens, ele havia de finalmente testemunhar o cumprimento literal de suas próprias profecias de iminente condenação, e partilhar da tristeza e dor que se seguiriam à destruição da cidade condenada.”[4]
Contudo, o profeta sustentou a reforma com entusiasmo, até que percebeu que isso não estava mudando o coração do povo. As desencorajadoras circunstâncias sob as quais trabalhou e a extraordinária extensão em que a idolatria havia tomado o lugar da religião revelada em Judá foram refletidas na angústia que às vezes o acometeu, embora não o tornassem pessimista. Ele podia “olhar para além das desoladoras cenas do presente às gloriosas perspectivas do futuro, quando o povo de Deus seria resgatado da terra do inimigo, e novamente plantado em Sião”. [5]
Tendo sido educado na infância para o sacerdócio, Jeremias não se imaginava integrante do ministério profético, muito menos em circunstâncias tão difíceis. Mas a Palavra do Senhor lhe chegou muito clara: “Antes que Eu te formasse no ventre materno, Eu te conheci, e, antes que saísses da madre, te consagrei, e te constituí profeta às nações” (Jr 1:5). Então, apoderou-se dele o senso de indignidade: “Ah! Senhor Deus! Eis que não sei falar, porque não passo de uma criança” (v. 6).
Porém, Deus Se recusou a aceitar a desculpa do profeta e respondeu com uma declaração expressiva de Sua vontade: “Não digas: Não passo de uma criança; porque a todos a quem Eu te enviar irás; e tudo quanto Eu te mandar falarás. Não temas diante deles, porque Eu sou contigo para te livrar, diz o Senhor” (v. 7, 8). Quando Deus ordena ou chama, não há lugar para sentimentos nem pensamentos em torno do próprio “eu”. Embora, em nosso direito soberano de escolha possamos recusar, somente uma opção nos tornará felizes e completos: Atender e obedecer. Jeremias atendeu à ordem de “ir a toda parte e se dirigir a qualquer pessoa a quem Deus o enviasse, quer fossem reis idólatras, sacerdotes corruptos, profetas mentirosos, juízes injustos e homens de toda hierarquia, independentemente de quão proeminentes ou poderosos fossem eles.”[6]
E Deus lhe prometeu Sua bendita companhia (v. 8), o que fez com que o profeta superasse o temor e a timidez, colocando-o acima dos inimigos poderosos e suas ameaças.
Na culminância desse encontro, relata Jeremias: “O Senhor estendeu a mão, tocou-me na boca e o Senhor me disse: Eis que ponho na tua boca as Minhas palavras. Olha que hoje te constituo sobre as nações e sobre os reinos, para arrancares e derribares, para destruíres e arruinares e também para edificares e para plantares” (v. 9, 10).
Essa foi como que uma cerimônia solene de consagração de Jeremias. Recebendo nos lábios o toque divino, à semelhança de Isaías (Is 6:6, 7), o profeta assegurou-se de que não havia incerteza na mensagem a ser transmitida. Assim, ele estava pronto a anunciar as palavras que o Espírito de Deus colocasse em seu coração. Deus não apenas deu Suas palavras a Jeremias, como também prometeu velar por elas até que fossem cumpridas.
Investido de autoridade divina, Jeremias agiu como representante do próprio Deus, realizando uma obra ampla com vistas à restauração do povo. Estava autorizado a arrancar e derribar, destruir, arruinar, edificar e plantar. Essas são metáforas extraídas da arquitetura e da agricultura, simbolizando o aspecto destruidor dos castigos bem como a disposição de Deus para restaurar e curar. Nas palavras de Wiersbe, “em seu ministério, Jeremias teve que ser destruidor e construtor (Jr 1:9, 10), coluna e muro (Jr 1:17,18), atalaia (Jr 6:17) depurador de metais ou ‘acrisolador’ (Jr 6:27-30), médico (Jr 8:11, 21, 22), fundista (Jr 12:5), pastor (Jr 13:17, 20, 21; 17:16, 23)”.[7]
Jeremias e nós
Faremos a nós mesmos um imenso bem, se relembrarmos repetidamente as lições do trato de Deus com Jeremias. Estou seguro de que elas infundirão em nós ânimo renovado sempre que o inimigo ameaçar nos assaltar com dúvidas relacionadas à legitimidade de nossa vocação, ou com oposição e tentações.
A primeira lição a ser lembrada é de que Deus tomou a iniciativa do nosso chamado. “Antes que Eu te formasse no ventre materno, Eu te conheci; e antes que saísses da madre, te consagrei”, disse o Senhor ao profeta. Aos discípulos, Cristo reafirmou essa verdade, extensiva a todos os pastores: “Vocês não me escolheram, mas eu os escolhi para irem e darem fruto, fruto que permaneça, a fim de que o Pai lhes conceda o que pedirem em meu nome” (Jo 15:16, NVI).
É absolutamente necessário compreendermos isto: Deus nos chamou. Isso significa que não pertencemos a homens nem a instituições da Terra. Somos de Deus; a Ele cabe nos castigar ou recompensar. O relacionamento decorrente de nossa resposta ao Seu chamado é maravilhosamente descrito nestas palavras de Mário Veloso: “Cristo é nossa promessa, nossa realidade e nossa vida. Com Ele, nada nos falta, embora pareça que tudo nos falte. Com Ele, somos vitoriosos, embora a vitória pareça distante. Com Ele, somos filhos de Deus e vivemos seguros, embora a insegurança nos assalte a cada passo.
“Se angustiados, nEle confiamos. Se afligidos, caminhamos com Ele. Se perseguidos, para Ele fugimos. Se caluniados, confiamos nEle. Por Cristo vivemos e por Ele morremos. Nada nos intimida. Nada nos espanta. Nada nos detém. Somos livres em Cristo e de Cristo escravos somos. Somos Suas testemunhas, Seus colaboradores, Seus servos, Seus embaixadores. Sua propriedade somos. Sua justiça é nossa justiça. Suas obras, nossas obras. Ele é a nossa consciência e a força de nossas ações. Ele é nossa alegria e o gozo de nossa vida. Nossa vida é Ele, e Ele é tudo o que somos. Nada queremos que não seja dEle, nada que nos separe dEle. Nele vivemos e nos movemos e somos. Ele é tudo para nós, em tudo.”[8]
Em segundo lugar, podemos julgar-nos incapacitados para a missão a ser cumprida, mas o Senhor Se encarrega de nos habilitar. Se a iniciativa é dEle, cabe-Lhe também a responsabilidade por todo o empreendimento. Sendo que Ele vê o fim desde o princípio e conhece nossas limitações e possibilidades, podemos concluir que Ele sabe como nos tornar úteis em Sua seara. Não precisamos temer coisa alguma, nem recuar diante dos obstáculos. Jeremias recebeu a incumbência e também a garantia da presença do Senhor (Jr 1:7, 8, 17-19).
A certeza da companhia divina, reiterada na promessa feita por Jesus Cristo: “Estou convosco todos os dias até a consumação do século” (Mt 28:20), tem sido motivo de ânimo e força para todos os que têm aceitado o chamado para a pregação do evangelho.
Em terceiro lugar, há o toque poderoso e conferidor de santificada autoridade pastoral: “Estendeu o Senhor a mão, tocou-me na boca e o Senhor me disse: Eis que ponho na tua boca as Minhas palavras” (Jr 1:9). O poder transformador e a autoridade das mensagens que Jeremias devia transmitir não residiam na sua capacidade argumentativa, retórica nem erudição. A palavra seria poderosa, autorizada e transformadora porque era a Palavra de Deus. Semelhantemente, hoje, a Palavra de Deus é a mensagem a ser proclamada para arrancar, derribar, destruir e arruinar o mal, a idolatria e a descrença, edificar caracteres dignos do Reino celestial e plantar esperança. Isso com os sentimentos de amor, graça e misericórdia abundantes nEle. Sua Palavra é nossa palavra. Seus sentimentos são nossos sentimentos; nossos motivos são os motivos dEle.
Descrevendo a missão do pregador credenciado pelo toque poderoso de Deus, Anderson afirmou: “Como porta-voz de Deus, ele não é um pressagiador de condenação e sim um arauto de felicidade. Traz a alegria do Senhor aos abatidos e desencorajados. Eleva os homens da lama do pecado à presença de Deus. Nenhum poder na Terra pode ser igualado ao pregador inspirado pelo Espírito. Na vida e no ministério daquele cujos lábios foram tocados com o fogo divino haverá sempre milagres da graça. Isso é verdadeiramente um ministério profético. Através dele, o pregador desperta o interesse e conduz homens à comunhão com Deus.”[9]
Finalmente, “as experiências pelas quais Jeremias passou nos dias de sua juventude e também nos posteriores anos de seu ministério, ensinaram-lhe a lição de que ‘não é do homem o seu caminho nem do homem que caminha o dirigir os seus passos’. Ele aprendeu a orar: ‘Castiga-me, ó Senhor, mas com medida, não na Tua ira, para que me não reduzas a nada.’
“Quando chamado a beber o cálice da tribulação e tristeza, e quando em sua miséria era tentado a dizer: ‘Já pereceu a minha força, como também a minha esperança no Senhor’, recordava as providências de Deus em seu favor, e triunfantemente exclamava: ‘As misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos, porque as Suas misericórdias não têm fim; novas são cada manhã; grande é a Tua fidelidade. A minha porção é o Senhor, diz a minha alma; portanto esperarei nEle. Bom é ter esperança, e aguardar em paz a salvação do Senhor’.”[10]
É nessa dependência que devemos viver e trabalhar. O Deus que nos chamou nos conhece perfeitamente; sabe quem somos, o que somos e como somos, está desejoso e pronto para nos moldar segundo Seu plano. Ele estará conosco em todos os momentos e situações vividas. Impulsionados pelo toque purificador e habilitador de Sua mão, temos um sagrado ministério a desempenhar. Vamos fazê-lo fielmente, antevendo a vitória final.
Referências:
1 Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações, p. 293.
2 ___________, Atos dos Apóstolos, p. 455.
3 Ibid., p. 490.
4 Ellen G. White, Profetas e Reis, p. 408.
5 Ibid., p. 409.
6 ComentárioAdventistadelSéptimoDia,v.4,p.390. 7 Warren Wiersbe, Comentário Bíblico Expositivo (Santo André, SP: Editora Geográfica, 2006), v. 4, p. 90, 91.
8 Mário Veloso, Mateus – Comentário Homilético (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2006), p. 27.
9 Ellen G. White, Profetas e Reis, p. 284. 10 Ibid., p. 420, 421.