O autor responde a contestações feitas ao seu livro sobre o trinitarianismo
Tendo publicado um livro de 850 páginas respondendo a objeções sobre a Trindade,[1] recebi um e-mail com a acusação de que a maioria dos adventistas do sétimo dia é triteísta. Embora eu tenha dedicado seis páginas do livro para argumentar contra o triteísmo,[2] fui desafiado por ter usado a palavra “Ser” para me referir à cada um dos membros da Divindade. Fiz isso porque senti que o uso excessivo da palavra “Pessoa” poderia levar a uma descrição demasiadamente humana de Deus.
Por exemplo, escrevi o seguinte: “Desde que há duas Pessoas ou Seres divinos, não há razão pela qual, em princípio, não pudesse haver uma terceira Pessoa ou Ser que também exista eternamente como Deus.”[3]
Isso é triteísmo?
O problema é que, embora o estudo da Bíblia nos forneça conceitos básicos da unicidade e da triunidade de Deus, ele não fornece palavras para descrever esses conceitos aparentemente paradoxais. Uma possibilidade encontrada em Hebreus 1:3 se refere a Cristo como sendo Ele “a expressão exata do Seu Ser” (Hb 1:3). A palavra aqui traduzida como “Ser” é hupostasis, cujo significado é “pessoa” (Versão King James), “substância” (Versão Revisada), “natureza” (Versão Revisada Standard) e “Ser” (Nova Versão Inglesa).
De acordo com Robert Letham, Basil (330-379 a. D.) foi o primeiro escritor cristão a usar hupostasis para enfatizar a distinção dos membros da Divindade. A utilização feita por Basil denota que “Deus é triúno, abrindo assim o caminho para se falar da Trindade numa linguagem clara”.[4]
Essa terminologia foi tomada por outros e usada no Primeiro Concílio de Constantinopla (381 a. D.), ocasião em que foi feita a seguinte declaração: “De acordo com essa crença, há uma Divindade, Poder e Substância do Pai, do Filho e do Espírito Santo; com iguais dignidade e majestade em três hupostasis perfeitos, isto é, três Pessoas perfeitas.”[5]
No idioma inglês, o conceito de “três hupostasis” tem sido tradicionalmente expressado como “três Pessoas”. Muitos escritores trinitarianos não se referem a “três Seres”, mas pelo menos um defensor do trinitarianismo argumenta que “a admissão de três Seres infinitamente perfeitos não implica a existência de mais de um Deus”.[6]
Embora o idioma grego tivesse um termo para se referir à triunidade de Deus, não tinha um para expressar Sua unicidade. Os cristãos gregos parecem ter tomado emprestada dos gnósticos,[7] a palavra homoousios, composta de duas partes (homo e ousios) e que significa “mesma substância” ou “mesma essência”.
Essa palavra ganhou notoriedade no Primeiro Concílio de Niceia (325 a. D.), e Eusébio, historiador da igreja, achou necessário explicar a seus leitores em Cesareia a adoção do termo homoousios.[8] Quando se referiam à triunidade e à unicidade de Deus, os gregos se sentiam justificados em usar as palavras hupostasis e homoousios; porém, a Escritura não fala se eles estavam corretos na maneira pela qual faziam isso.
Posteriormente, tentativas para traduzir essas duas palavras para outros idiomas suscitaram várias questões. Eruditos ingleses têm usado “Pessoa”, como tradução de hupostasis, e a frase “de uma substância”, como tradução de homoousios. Seriam essas as melhores expressões para descrever a triunidade e unicidade de Deus? Onde cabe o termo “Ser”?
O problema com o uso de “Ser” parece datar dos tempos de Agostinho, que escreveu um famoso livro sobre a Trindade. Primeiramente, ele explicou o uso do termo “Pessoa”, dizendo o seguinte: “Quando você pergunta: ‘Três o quê?’, o discurso enfrenta uma grande carência de palavras. Assim, empregamos o termo ‘Pessoa’, não para dizer precisamente isso, mas para não ficar reduzidos ao silêncio.”[9]
Agostinho também explicou a razão pela qual ele não falava de “três Pessoas”. Ele disse: “Ao me referir a ‘Ser’, isso significa o que em grego é chamado ousia, que mais usualmente é chamado de substância.”[10] Com essa definição, “não podemos chamar esses três juntos de uma Pessoa, como os chamamos de um Ser e um Deus, mas dizemos três Pessoas, embora nunca digamos três Deuses ou três Seres”.[11]
Embora possa haver alguma coerência no que Agostinho argumentou em latim, o uso que ele fez de “Ser” em lugar de “substância” tem causado grande confusão, quando teólogos ingleses parecem ter seguido sua ideia nesse assunto. Por exemplo, note a seguinte afirmação: “Entretanto, podemos e seguramente devemos dizer que as três Pessoas são integradas em um Ser e o único Ser está integrado nas três Pessoas divinas, tanto que não há um Ser à parte das três Pessoas, e não há três Pessoas divinas separadas do Ser único.”[12]
Esse tipo de linguagem confunde o leitor, porque a palavra “Ser” pode ser usada de várias maneiras. Em primeiro lugar, é muito usada como particípio, como neste texto da versão bíblica King James: “Então José, seu marido, sendo um homem justo, e não querendo tornar pública a situação, secretamente planejou abandoná-la” (Mt 1:19). Em segundo lugar, na mesma versão, é usada como substantivo abstrato, sinônimo da palavra “existência”, conforme Atos 17:28: “Pois nEle, nós vivemos, e nos movemos, e existimos”. Finalmente, é usada como substantivo concreto, significando forma inteligente de vida, como “ser humano”, “ser angélico” ou “Ser divino”. Nesse sentido, a palavra “Ser” está mais perto do significado de “Pessoa” do que de “substância” ou ousia.
Agora, quando um numeral é colocado antes da palavra “ser”, como em “um ser”, ou “três seres”, o leitor se liga ao terceiro significado, ou seja, um substantivo concreto. O resultado é que, quando o autor diz que as três Pessoas da Divindade são “um Ser”, o leitor pode ver apenas uma expressão de modalismo. Essa heresia, uma das primeiras na igreja cristã, ensina que existe apenas “um Ser” que Se revela sequencialmente em um ou outro dos três modos: Pai, Filho e Espírito Santo.
As evidências parecem dizer que a causa do trinitarianismo poderia ter sido mais bem servida, se os teólogos ingleses tivessem conservado a declaração do credo apostólico: “de uma substância”,[13] em vez de seguir o caminho estabelecido por Agostinho. Letham declarou que “hoje, na prática, muitos cristãos ocidentais são modalistas”.[14] Posteriormente, ele afirmou: “Colin Gunton argumentou que a tendência ao modalismo, herdada de Agostinho, reside na raiz do ateísmo e agnosticismo que tem confrontado a igreja ocidental de um modo que não acontece no Oriente”.[15]
Opinião de Ellen White
Felizmente, os adventistas do sétimo dia têm a ajuda do Espírito de Profecia, através de Ellen G. White, para iluminar a compreensão de revelações que não parecem muito claras na Bíblia. Ela nos fornece descrições da triunidade e da unicidade de Deus. A primeira declaração sobre unicidade foi feita em 1893: “Jesus disse: ‘Eu e o Pai somos um.’ As palavras de Cristo foram cheias de profundo significado, ao declarar que Ele e o Pai eram de uma substância, possuindo os mesmos atributos.”[16]
Embora Ellen White tenha sequenciado a expressão “de uma substância” com a afirmação “possuindo os mesmos atributos”, não há indicações de que a última frase dilua o significado da primeira. É verdade que “possuindo os mesmos atributos” deve ser parte do significado da frase “de uma substância”, mas isso é somente uma arte, como ela mesma indica na precedente expressão: “cheias de profundo significado”.
A frase “de uma substância” era muito comum entre os comentaristas bíblicos nos dias de Ellen G. White. Uma busca no Google retornou aproximadamente 19 mil resultados para livros publicados entre 1700 e 1893, com a frase “de uma substância”. Uma rápida sondagem mostrou que muitos desses casos eram descrições da Divindade. Quatro exemplos são suficientes:
O Livro Anglicano de Oração diz: “E em unidade desta Divindade há três Pessoas de uma substância, poder e eternidade.”[17]
Citando o reformador presbiteriano escocês John Knox, M’Gavin afirmou: “Ofereço-me inteiramente para provar que Jesus Cristo é de uma substância com o Pai.”[18]
William Robinson, comentando a frase “de uma substância com o Pai”, diz o seguinte: “Essa frase foi adotada pelo Concílio Niceno. Aqueles que a aceitaram foram reputados como ortodoxos; os que a rejeitaram foram reputados como heréticos.”[19]
Como último exemplo, o escritor adventista A. T. Jones proveu um detalhe adicional a respeito do Concilio de Niceia: “Eusébio, bispo de Nicomédia, foi líder dos arianos que participaram no concílio [Niceia]. Nesse ponto, ele publicou uma carta na qual declarava que ‘afirmar que o Filho não foi criado equivale dizer que Ele era de uma substância – homoousion – com o Pai, e dizer que Ele era de uma substância era uma proposição evidentemente absurda.
“Isso deu ao grupo de Alexander e Atanásio a oportunidade que eles desejavam; tomaram a palavra sobre a qual eles tinham discutido com insistência durante muito tempo, inclusive tendo o chefe do grupo declarado que o uso daquela palavra era absurdo. Portanto, se eles insistissem na utilização dela, o grupo ariano estaria fora.”[20]
É significativo que Ellen G. White tenha publicado sua afirmação “de uma substância” justamente dois anos antes de Jones. Dificilmente ela não teria consciência de que seus leitores reconheceriam essa frase como a marca da ortodoxia trinitariana. Devemos estar particularmente agradecidos pelo fato de que ela tenha escrito essa declaração e a tenha colocado na revista Sinais dos Tempos, pois isso é um poderoso baluarte contra o triteísmo.
Embora tenhamos que ser agradecidos pela declaração mencionada, também devemos agradecer pelas descrições da triunidade da Divindade, conforme a revelação que ela recebeu. Algumas dessas afirmações foram feitas em 1920:21
“Os três grandes poderes no Céu são testemunhas… a garantia das três Pessoas – Pai, Filho e Espírito Santo.”[22]
“Você fez um compromisso na presença do Pai, do Filho e do Espírito Santo – os três grandes Dignitários pessoais do Céu.” [23]
“As três grandes e gloriosas Personalidades celestiais estão presentes na ocasião do batismo.”[24]
“Há três Pessoas viventes do trio celestial… o Pai, o Filho e o Espírito Santo.”[25]
“Você está nascido para Deus, e está sob a sanção e o poder dos três santíssimos Seres no Céu, que são capazes de guardá-lo de cair.”[26]
“Recorro às três grandes Excelências e digo: ‘Não posso fazer essa obra em minha própria força.”[27]
Comparando as datas dessas afirmações, vemos que mais de três anos foram passados desde sua declaração referencial: “de uma substância”, antes que ela começasse a enfatizar de maneira tão específica e marcante a tríplice natureza da Divindade. Isso é significativo.
Era importante que o povo de Deus fosse firmado na unicidade da Divindade como barreira contra o triteísmo, antes que ela começasse a enfatizar o outro lado do paradoxo, a triunidade, como proteção contra o unitarianismo, modalismo e muito do atual antitrinitarianismo. Ao escrever sobre a triunidade, Ellen G. White não tinha esquecido a unicidade, pois intercaladas com as declarações sobre triunidade aparecem afirmações que preservam a unicidade, tais como as seguintes:
“Aqueles que são batizados no tríplice nome [singular] do Pai, do Filho e do Espírito Santo, no início de sua vida cristã.”[28]
“Depois que tivermos formado uma união com o grande tríplice poder [singular], deveremos considerar nosso dever para com os membros da família de Deus com muito mais sagrado respeito.”[29]
Nessas duas afirmações, Ellen G. White expressou maravilhosamente bem o conceito básico da Trindade,
uma união de unicidade e triunidade. Assim, considerando que, durante muito tempo, os adventistas têm mantido a clássica declaração apoiada por Ellen White de que a Divindade é “de uma substância”, eles não podem ser acusados de ser triteístas. Nem há qualquer razão válida para não poder usar o termo “Ser”, como sinônimo da palavra “Pessoa”, em referência aos três membros da Divindade.
Referências:
1 Glyn Parfitt, The Trinity: What Has God Revelead: Objections Answered (Warburton, Victoria, Austrália: Signs Publishing Company, 2008).
2 Ibid., p. 383-389.
3 Ibid., p. 367.
4 Robert Letham, The Hly Trinity: In Scripture, History, Theology and Worship (Philipsburg: P&R Publishing, 2004), p. 149.
5 Synodical Letter of the First Council of Constantinople: Christian Classics Ethereal Library, 189, http://www.ccel.org/ccel/schaff/ npnf214.ix.ix.html/, 27/12/2010.
6 Timothy Dwight, Theology: Explained and Defended in a Series of Sermons (Nova York: G. and C. Carvill, 1830), v. 2, p. 8.
7 http://www.answers.com/topic/homoousian/, 19/12/2010.
8 Eusébio, Letter to His Church at Caesarea. Ver H. M. Gwatki, Selections From Early Christian Writers (Londres: James Clark & Co., 1958), p. 177=181.
9 Agostinho, The Trinity (Nova York: New City Press, 1991), p. 197.
10 Ibid.
11 Ibid., p. 232.
12 Thomas F. Torrance, The Christian Doctrine of God, One Being Three Persons (Londres: T&T Clark, 1996), p. 24.
13 Philip Schaff, The Creeds of Christendom, v. 1, p. 456.
14 Robert Letham, Op. Cit.. p. 5.
15 Ibid., p. 7.
16 Ellen G. White, Signs of the Times, 27/11/1893, p. 54.
17 The Book of Common Prayer, Church of England, p. 1716, 1765, 1838, 1892.
18 John Knox and William M’Gavin, The History of the Reformation of Religion in Scotland (Glasgow: Blackie & Son, 1832), p. 568.
19 William Robinson, Biblical Studies (Londres: Longmans, Gren and Co., 1866), p. 127.
20 A. T. Jones, The Two Republics: Or Rome and the United States of America (Battle Creek, MI: Review and Herald, 1891), p. 348, 349.
21 Glyn Parfitt, Op. Cit., p. 467-473.
22 Seventh-Day Adventist Bible Commentary (Washington, DC: Review and Herald, 1957), v. 6, p. 1074.
23 Ibid., v. 7, p. 959.
24 Ellen G. White, Manuscript 45, 14/05/1904, p. 10.
25 Seventh-Day Adventist Bible Commentary, v. 7, p. 441, 442.
26 Ellen G. White, Manuscript Releases, v. 7, p. 267
27 Ibid.
28 Seventh-Day Adventist Bible Commentary, v. 6, p. 1075.
29 Ibid., p. 1102.