A saída para o desafio de continuar sendo humano em meio à tentação para ser diferente
Referindo-se a problemas de saúde enfrentados pelos pastores, em um artigo no jornal The New York Times (01/08/2010), o jornalista Paul Vitello escreveu o seguinte: “Os membros do clero agora sofrem de obesidade, hipertensão e depressão em níveis mais elevados que os da maioria dos americanos. Na última década, aumentou o uso de antidepressivos entre eles, enquanto diminuiu a expectativa de vida. Se pudessem, muitos gostariam de mudar de atividade. Peritos em saúde pública… preveem que não há explicação simples para o fato de que muitos membros de uma profissão associada com longevidade e saúde perfeita tenham se tornado mais doentes e infelizes.”
Embora não haja uma resposta simples para esse dilema, suponho que nele pelo menos um fator esteja envolvido: o desafio de continuar sendo humano em meio à tentação de ser diferente. Entre todos os ramos vocacionais que se dedicam a prestar assistência a pessoas, nenhum parece requerer maior negação da condição e experiência humana como o ministério pastoral. O que isso significa?
Um desafio
Para os iniciantes, hoje, a maior fonte de tristeza e frustração no ministério gira em torno do paradoxo vivido entre a formação pastoral e as desilusões vividas no dia a dia do pastorado. Como supervisor da pastoral clínica, tenho visto muitos exemplos e ouvido muitas histórias de colegas que lutam contra suas necessidades humanas básicas. E tenho visto que, muito frequentemente, temos invertido o paradigma da formação pastoral, colocando maior ênfase em fazer em vez de ser. Como resultado, pastores têm dificuldade em prover equilibrado cuidado de si mesmos e de outras pessoas. Em outras palavras, eles vivem tão ocupados fazendo, que perdem o senso de ser. Porém, aquilo que somos denuncia o que fazemos. Assim, faria sentido gastar mais tempo trabalhando na autoconscientização e na formação da identidade porque, no fim de tudo, essas partes eventualmente mostrarão o que fazemos.
Sob o risco de parecer muito simplista, vamos considerar isso a partir do mais básico nível de desenvolvimento: nossa humanidade. Somos todos seres humanos. A tentação e atração para ser e viver mais como “fazedores” humanos do que como seres humanos produzem incongruência na vida. Isso é a essência do pecado que nos foi oferecido pela serpente no Éden quando, através dela, Satanás disse: “Vocês serão como Deus” (Gn 3:5). Em outras palavras, “vocês serão capazes para conhecer e fazer coisas que estão além do domínio de sua humanidade, além daquilo que Deus pretendeu que vocês fossem ao criá-los”.
Nós compramos a mentira e aqui estamos. “Pecado é transgressão da lei” (1Jo 3:4), não apenas como expressa nos Dez Mandamentos, mas como definida pela lei da vida e como Deus nos criou. Se esse conceito básico assusta você ou o pega de surpresa, é possível que você já esteja no caminho do desânimo. Há dois componentes básicos para a expressão “ser humano”. O humano é a parte do ego que experimenta todos os aspectos de intimidade transmitida através de emoções e sentimentos, que, por sua vez, criam uma conscientização da vida e do que ela significa. Dor, temor, tristeza, alegria e ódio são todos lugares primitivos em que o ser humano finalmente encontra um senso de si mesmo.
O ser é a parte formadora do ego, que cria o significado das percepções, dos relacionamentos e circunstâncias. Como ser criado à imagem de Deus, o ser humano tem a capacidade de criar propósito e significado para a vida.
Coisas surpreendentes
Porém, isso não é tudo a respeito do ser. Deus não nos criou para ficar meditando sob uma árvore durante o dia todo, em busca de autoconscientização e significado da vida enquanto ela passa. Deus nos criou com a capacidade de fazer coisas surpreendentes, como resultado de quem somos. De fato, mencionamos “surpreendentes”, porque elas ultrapassam os limites comuns de nossa existência e condição humana. Elas devem ser celebradas e desfrutadas em plenitude máxima. Mas uma vida e um ministério saudáveis enfrentam o desafio de encontrar uma abordagem equilibrada entre ser e fazer.
Algum tempo atrás, minha esposa foi submetida a uma cirurgia em um ombro. Logo depois, o ombro e o braço sadios passaram a doer muito. O médico disse: “Seu ombro e braço sadios estão doendo porque você os está usando excessivamente, para compensar a inatividade do outro. Quando o ombro operado sarar e você puder usar os dois braços, a dor também passará.” Muito do nosso sofrimento cessará quando aprendermos a viver o equilíbrio e a graça de ser e fazer.
Note as quatro polaridades, quatro áreas de tensão que devem ser equilibradas:
1. Limite e possibilidades. Quando Deus criou o ser humano, basicamente Ele disse: ‘Aqui estão suas possibilidades e aqui estão seus limites. Está vendo aquela árvore? Fique longe dela! Está vendo o restante do jardim? Desfrute-o!”
No pastorado, enfrentamos a tentação de ultrapassar nosso limite e descartar nossas possiblidades, especialmente quando temos pessoas ao nosso redor buscando coisas que estão além de nossa condição ou capacidade humana. Quando tentamos ultrapassar esses limites, sofremos porque nos colocamos num lugar irreal do ministério, ou fazemos outros sofrerem por darmos expectativas e respostas irreais. Ouço essa tensão e esse desespero na voz de pacientes, quando eles confrontam o momento finito na doença e perguntam: “Capelão, o que posso fazer?”
2. Contingência e controle. Essa é uma tensão particularmente difícil no ministério, porque nós, pastores, estamos rodeados de pessoas que nos procuram buscando respostas, explicações e diretrizes para a vida. Aqui a euforia e a decepção se chocam. Somos treinados para encontrar respostas teológicas para os dilemas e mistérios da vida. Mas, há coisas para as quais não temos explicação. O medo de perder o controle, de ser considerado incompetente ou espiritualmente imaturo cria pressões que empurram o pastor para expectativas irracionais e intervenções afetadas. Em lugar da vulnerabilidade humana, as explicações se tornam mais da projeção de nossos desejos e necessidades em vez de conforto, cuidado e apoio.
Há coisas na vida que podem ser explicadas e, até certo ponto, posso ter controle sobre elas. Mas a vida saudável é vivida na tensão de identificar aquelas coisas que estão sob meu controle e aquelas que devo deixar nas mãos de Deus. A resposta mais honesta e humana que podemos dar nessa ocasião é: “Não sei.” Novamente, essa questão surge quando pacientes perguntam: “O que aconteceu? Do que eu posso depender?” Podemos depender do mesmo Deus que, quando foi perguntado pelo Filho: “Por que Me desamparaste?” (Mt 27:46), não deu explicação mas O sustentou em silêncio e foi bastante fiel para que Seu Filho pudesse dizer: “Pai, nas Tuas mãos entrego o Meu espírito” (Lc 23:46).
3. Autonomia e dependência. Aqui, os pacientes normalmente perguntam: “Capelão, pelo que sou responsável?” Deus nos criou com capacidade para tomar decisões: escolher aonde ir, o que fazer e com quem estar. Assim que o bebê nasce, seu choro é um pedido de atenção imediata, anunciando ao mundo sua autonomia como ser humano. Ao mesmo tempo, ele está em completa dependência de outros, de quem pode receber afeto, conforto e sustento.
À medida que crescemos, essa dinâmica interpessoal muda na forma, não em princípio. Continuamos a exercer nossa autonomia em outro nível, embora necessitemos do apoio e conforto de outros. Isolamento e solidão são dois lugares familiares, mas insalubres, a que os pastores vão quando o equilíbrio entre autonomia e dependência se torna comprometido.
4. Significado e insignificância. Fomos criados por Deus como seres que, no âmago, clamam por significado e propósito na vida. São duas capacidades e necessidades intrínsecas que trazemos como seres humanos. Entretanto, há momentos em que a vida não tem sentido e o significado que buscamos parece não existir.
Se eu achar que tudo tem que ter significado, então criarei esse significado fora de minhas próprias necessidades e projeções, ou imporei formas de significado para evitar minha vulnerabilidade humana e dependência de Deus. Por outro lado, se eu vivo na polaridade da insignificância, corro o risco viver em cinismo, sarcasmo e constante suspeita. Pacientes aumentam essa tensão saudável quando perguntam: “Capelão, em que ou em quem posso confiar?” Essa é uma questão de fé e uma busca de equilíbrio entre significado e insignificância.
Caindo e levantando
Na jornada para manter um saudável senso de identidade, o maior desafio para o pastor é continuar sendo humano em meio à tentação para ser diferente. Não admitir o equilíbrio e tensão leva as pessoas a desenvolver comportamentos doentios que entorpecem o sofrimento e a dor, decorrentes de um sentido de inadequação e futilidade. Vivendo e ministrando nas polaridades, indo de um extremo a outro, repelimos o equilíbrio. Consequentemente, terminaremos em cinismo, vergonha, depressão e desespero. Então, começamos a depender de artificialidades tais como antidepressivos, comer excessivamente, comportamentos egoístas que prejudicam nossos relacionamentos íntimos e comportamentos doentios que produzem ainda mais sofrimento e dor.
Quando criancinhas começam a andar, o que mais desejamos é que mantenham o equilíbrio, de modo que não caiam nem se machuquem. Então, elas crescem e algo acontece: dão como certo o equilíbrio até que, um dia, caem e se machucam. Algumas o recuperam e continuam caminhando. Outras ignoram a necessidade do equilíbrio e continuam tentando caminhar de um lado para outro, caindo às vezes. A queda e a consequente dor de uma ferida podem ser a graça necessária para erguer nossa mão a Deus e Lhe pedir que nos levante e nos ensine a caminhar no equilíbrio de Sua graça.
Identidade própria
Existem quatro princípios para manter o sentido de identidade própria.
1. Tome tempo para refletir sobre quem você é aos olhos de Deus. “Parem de lutar! Saibam que Eu sou Deus!” (Sl 46:10). Nesse verso, a implicação é que, a menos que eu tome tempo para me acalmar e relaxar, repousar e refletir, e para avaliar quão equilibrada ou não é minha vida, corro perigo de esquecer que somente Deus pode me sustentar.
2. Entregue a Deus a necessidade de ampliar seus limites. Esse é um contínuo processo de reconhecimento diário daquelas coisas dentro de nós que nos impulsionam para ser quem não somos e a fazer coisas para cuja execução não fomos criados. Suponho que Paulo soubesse pessoalmente algo sobre essa luta espiritual-humana, quando escreveu aos romanos: “Graças a Deus, porque, embora vocês tenham sido escravos do pecado, passaram a obedecer de coração à forma de ensino que lhes foi transmitida. Vocês foram libertados do pecado e tornaram-se escravos da justiça. Falo isso em termos humanos, por causa das suas limitações humanas” (Rm 6:17-19).
No verso 23, ele diz: “Pois o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor.”
3. Descubra o significado de experimentar e expressar seus sentimentos e emoções, processando-os através de uma abordagem equilibrada, racional e reflexiva da vida. Seja complacente consigo mesmo; abra o coração às possibilidades de saudáveis relacionamentos profissional e pessoal, que possam ajudá-lo a levar perspectiva aos momentos na vida em que você experimenta revés e esperança, tristeza e alegria, isolamento e comunhão, ira e contentamento, rejeição e aceitação, medo e confiança, perdão e graça.
4. Não perca de vista o eterno impacto que sua afetuosa presença pastoral tem quando essa presença é ofuscada pelos dons de sua humanidade. “Aquele que é a Palavra tornou-Se carne e viveu entre nós” (Jo 1:14). Esse verso chama a atenção para a vulnerabilidade humana e transparência no ministério, enquanto levamos as boas-novas de salvação, assim como Cristo fez quando viveu na Terra como um de nós. Quando esse mistério do evangelho encarnado tocar a raça humana, desejaremos então contemplar a glória de Deus, uma glória que tem tocado e transformado milhões de corações.
As palavras de Paulo sintetizam minha oração pelos pastores: “Mas Ele me disse: ‘Minha graça é suficiente para você, pois o Meu poder se aperfeiçoa na fraqueza’. Portanto, eu me gloriarei ainda mais alegremente em minhas fraquezas, para que o poder de Cristo repouse em mim. Por isso, por amor de Cristo, regozijo-me nas fraquezas, nos insultos, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias. Pois, quando sou fraco é que sou forte” (2Co 12:9, 10).