“A certeza de que estamos ligados a um poder maior do que qualquer inimigo é uma fonte de conforto e força”
Um dos meus professores favoritos na faculdade foi o professor de Religião. Aquele professor apreciava os temas que ensinava. Era bom comunicador e gostava de estar com os alunos. Tinha um tremendo senso de humor e era estudioso.
Dois anos depois de minha formatura, eu soube que ele estava enfrentando problemas de saúde. O diagnóstico logo se tornou conhecido: “esclerose múltipla”. Então, a faculdade me pediu que cobrisse uma de suas aulas por algumas semanas durante sua licença médica. Ele conseguiu voltar à sala de aulas e ensinar durante algum tempo, mesmo estando em uma cadeira de rodas. Mas o avanço da doença tornou isso impossível. Finalmente se aposentou e foi morar em outra comunidade. Certo dia, durante a visita do pastor da igreja, ele comentou: “Toda guerra tem vítimas. Há uma grande guerra acontecendo no Universo entre o bem e o mal, e eu sou uma das vítimas desse conflito.”
A presença e propagação do sofrimento no mundo é um grande desafio à nossa crença religiosa. Se Deus é perfeito, bondoso e poderoso, perguntam os filósofos, como Ele pode, então, permitir a existência do sofrimento? Se Deus realmente Se importa comigo, por que Ele permite que eu sofra? Ao longo dos anos, as pessoas têm respondido a essas questões de maneiras diversas. Algumas acreditam que os planos de Deus são perfeitos, e embora não possam compreender tudo, creem que o sofrimento seja parte do plano divino. Outras pessoas acreditam que o sofrimento não é da vontade de Deus, mas resultou dos erros que algumas de Suas criaturas cometeram. E ainda outras argumentam que o sofrimento tem seus benefícios, e nós podemos aprender e crescer em resposta a ele.
Essas e outras formas de responder ao sofrimento, as teodiceias como são frequentemente chamadas, têm recebido atenção especial dos estudiosos. Cada uma tem seus pontos fortes, cada uma levanta algumas questões e, o mais importante, as pessoas que sofrem descobrem no sofrimento uma fonte de encorajamento pessoal.
“Um inimigo fez isso”
Diante de sua grande perda, meu professor chamou de “teodiceia do conflito cósmico” a batalha em que os seres humanos estão envolvidos entre as forças do bem e do mal. No centro desse conflito está a imponente figura do arqui-inimigo de Deus. Esse inimigo é o único responsável por tudo o que está errado e enfermo nas coisas criadas por Deus. Essa figura aparece em diversas partes da Bíblia. Um exemplo bem conhecido é o prólogo do livro de Jó (capítulos 1 e 2).
O Senhor permitiu que Satanás testasse Seu servo fiel. Além disso, o diabo também apareceu como grande adversário de Jesus, tentando-O no deserto (Mt 4:1-11; Lc 4:1-13). O livro do Apocalipse apresenta um vívido retrato desse conflito cósmico: “Houve peleja no Céu. Miguel e os Seus anjos pelejaram contra o dragão. Também pelejaram o dragão e seus anjos; todavia, não prevaleceram; nem mais se achou no Céu o lugar deles. E foi expulso o grande dragão, a antiga serpente, que se chama diabo e Satanás, o sedutor de todo o mundo, sim, foi atirado para a Terra, e, com ele, os seus anjos” (Ap 12:7-9).
Para muitos que sofrem, a ideia de um conflito cósmico é de particular ajuda. Compreendem que seu sofrimento não vem de Deus, mas de algo totalmente oposto a Deus e causado por um poder diabólico que faz tudo o que pode a fim de tornar miserável nossa vida. Assim, em vez de ficarmos perguntando por que Deus permite, ou se Ele tem a intenção de usar o sofrimento para algum propósito, nossa resposta deve ser: “Um inimigo fez isso” (Mt 13:28), e lançar a culpa sobre esse inimigo.
Nos últimos anos, a figura do diabo tem aparecido com pouca frequência nas discussões filosóficas sobre o “mal”. Contudo, para alguns pensadores, a ideia do arqui-inimigo de Deus é indispensável para uma abordagem correta do sofrimento. Por exemplo, Gregory A. Boyd, em sua “cosmovisão da guerra trinitária”, coloca a responsabilidade pelos sofrimentos do mundo diretamente sobre o diabo.[1]
Em relação à pergunta: “Devemos culpar Deus pelo sofrimento?”, Boyd responde com um enfático “não!”[2] Deus tem inimigos, ele argumenta, e esses têm grande poder. Eles são os responsáveis pelas tristezas e desgraças do mundo. Satanás e sua corte, que uma vez foi angelical e agora é demoníaca, são as forças que atuam por trás do conflito e do derramamento de sangue da história humana. Sua interferência com os processos da natureza tem transformado o mundo, de um lar perfeito planejado por Deus, em um ambiente sinistro e ameaçador, marcado pela dor, enfermidade e morte.[3]
Ainda de acordo com Boyd, o conceito de uma guerra cósmica responde às indagações e aos questionamentos suscitados pelo sofrimento: Como pode um Ser perfeito permitir isso? Por que tenho que sofrer? A existência do sofrimento não foi algo confuso para os que viveram durante a época da história bíblica, ele observa, nem para aqueles dos séculos seguintes. Ao contrário, eles estavam cientes da presença dos poderes do mal, e atribuíram os males da vida a esses poderes, não a Deus. Se o Universo é habitado por uma hoste de seres que se opõem a Deus, e causam morte e destruição, não é de surpreender o fato de que sofremos. Surpreendente seria se não sofrêssemos.
Do ponto de vista da teodiceia do conflito cósmico, não sofremos porque Deus deseja que soframos, mas sim, porque vivemos em uma zona de guerra. Sofremos porque os inimigos de Deus estão ativos no mundo e nos tornamos vulneráveis a seus ataques.[4] Assim, é inútil procurar uma razão ou finalidade específica para o sofrimento.
“Quando aceitamos a cosmovisão bíblica desse conflito, o problema intelectual do mal se transforma no problema prático do mal.”[5] Livres, então, do ônus de explicar ou compreender o sofrimento, e fortalecidos pela vitória alcançada pela morte e ressurreição de Jesus, somos chamados a nos unir a Deus resistindo às forças do mal e aliviando o sofrimento.
Conflito dos séculos
Gregory Boyd não está sozinho entre os estudiosos cristãos que atribuem ao diabo o papel proeminente na culpa pelo sofrimento humano. Em sua opinião, Ellen G. White[6] é “quem relaciona essa perspectiva de guerra com o problema do mal e a doutrina de Deus, mais profundamente que qualquer
outro na história da igreja”.[7] O tema central da teodiceia descrita por Ellen G. White aparece no título de sua série de livros mais influentes, O Conflito dos Séculos, bem como no título de seu livro mais influente, O Grande Conflito Entre Cristo e Satanás. Conforme menciona o prefácio desse livro, seu propósito é “apresentar uma solução satisfatória para o grande problema do mal”.[8]
À semelhança de Boyd, Ellen G. White apresenta o sofrimento humano dentro da moldura do conflito cósmico. O conflito começou com uma revolta contra Deus entre o mais alto nível de seres criados, e isso somente vai terminar quando os inimigos de Deus perecerem e os propósitos amorosos de Deus para Sua criação, finalmente, forem concretizados. Nessa perspectiva, o diabo é a fonte de todos os males do mundo, e tudo o que faz com que a vida humana seja miserável é, em última análise, atribuído à nossa participação em sua rebelião contra Deus.
Antes dessa rebelião, Lúcifer foi um ser majestoso, querubim-cobridor e líder da hoste angelical (Ez 28:14, 15). A despeito de sua elevada posição e grande inteligência, ele, de maneira misteriosa e inexplicável, questionou a autoridade de Deus. Lúcifer despertou suspeitas em seus companheiros e, quando a oposição deles se tornou declarada, foram expulsos do Céu.
Quando Adão e Eva comeram da árvore proibida, sua deslealdade a Deus os deixou vulneráveis aos ataques dos inimigos de Deus. Desde então, Satanás e seus anjos têm estado ocupados “causando estragos” na Terra. Essas forças sinistras são responsáveis por tudo o que ameaça a vida e o bem-estar humano, desde as catástrofes naturais e doenças orgânicas até o pecado individual, em todas as suas manifestações. Sob a aparência de atividade humana, o curso da História consiste no conflito entre Deus e Satanás, enquanto esses grandes poderes prosseguem em seus objetivos contrastantes para a Terra, cada um tentando contrafazer e prejudicar o trabalho do outro.
Ellen G. White menciona que a questão central no grande conflito é o caráter de Deus, ou, mais precisamente, a reputação de Deus.[9] A persistente acusação de Lúcifer é que Deus é tirano e abusivo, indigno da devoção de Suas criaturas. Para resolver o conflito, Deus providenciou uma revelação definitiva do Seu caráter. A dádiva de Seu próprio Filho demonstra vividamente o amor divino e expõe a nulidade das acusações de Satanás. A cruz foi o ponto da virada na grande controvérsia. Com a morte de Cristo, “rompidos os últimos vínculos entre Satanás e o mundo celestial”. Então, “todo o Céu triunfou na vitória do Salvador. Satanás foi derrotado, e soube que seu reino estava perdido”.[10] Quando o mal for finalmente erradicado do Universo, a “terrível experiência de rebelião” servirá como “perpétua salvaguarda a todos os seres santos, impedindo-os de ser enganados quanto à natureza da transgressão, livrando-os de cometer pecado e sofrer seu castigo”.[11]
Dúvidas
Nenhuma teodiceia é mais dramática do que essa do conflito cósmico, destacando a enigmática figura de Lúcifer, o anjo querubim cobridor que se tornou o arqui-inimigo de Deus. Mas, como toda tentativa de explicar o surgimento do mal no mundo de Deus, essa abordagem levanta algumas questões importantes. Uma delas diz respeito à sua plausibilidade. Existiria, de fato, um conflito cósmico acontecendo ao nosso redor? Estaríamos rodeados de personagens invisíveis? Será possível que existem realmente poderes sobre-humanos influenciando o curso da nossa natureza e história?
Essa visão das coisas parece não ter sentido diante da perspectiva moderna de vida. Hoje, instintivamente as pessoas se voltam para a ciência e a tecnologia a fim de compreender o mundo em que vivemos, em vez de forças sobrenaturais. Elas raramente falam sobre anjos, demônios ou outras personalidades invisíveis para explicar as coisas que acontecem.
Há também pessoas que questionam o real conceito de um conflito cósmico. A ideia de um agente sobre-humano, cuja revolta engloba todo o Universo e se torna uma verdadeira ameaça para o governo de Deus, parece incoerente à luz do conceito tradicional de poder e sabedoria divinos. Como poderia um ser criado representar um sério desafio para Deus? Afinal de contas, como Criador, Deus não somente trouxe o Universo à existência; mas, é pelo Seu poder que tudo o que existe é sustentado, momento após momento.Portanto, se tudo o que foi criado deve sua existência a Deus, como poderia qualquer criatura, até mesmo a mais altamente exaltada, representar uma real ameaça a Deus? O que esses seres inteligentes esperavam ganhar ao contestar a supremacia divina, se eles sabiam que Deus poderia aniquilá-los instantaneamente?
Apelo atrativo do conflito
Quaisquer que sejam as questões levantadas, há muitas pessoas que acham a ideia de um conflito cósmico não somente plausível, mas útil. Boyd afirma que o secularismo, com sua negação do sobrenatural, já não é tão influente como antes. Com o “despertar pós-moderno” das últimas décadas, as “estruturas das modernas categorias naturalistas ocidentais” estão se tornando cada vez mais irrelevantes, e as pessoas estão menos dispostas a descartar a perspectiva de outras eras históricas e outras eras implausíveis, “primitivas”, ou “supersticiosas”.[12]
É claro que, em nível popular o sobrenatural nunca perdeu sua atração. Anjos têm sido destaque no cinema e na televisão. Milhões de pessoas estão intrigadas com o diabo. Ele é um personagem familiar em filmes e novelas. Aparece com destaque em uma gama de fenômenos religiosos, evocando respostas que vão desde medo, repulsa, desafio e admiração, até mesmo a adoração. E ele ainda aparece na psicologia popular.[13]
Outro fator aponta para uma sobre-humana fonte do mal. Certas formas de sofrimento são de tal magnitude que desafiam a compreensão. De fato, somente uma causa sobre-humana e de proporções cósmicas poderia explicá-las. O Holocausto criou a ideia plausível do diabo para muitos no século 20. Todos nós podemos nos lembrar de casos de crueldade e violência, tão ultrajantes, tão além do que os seres humanos podem suportar e sequer imaginar, que eles clamam por alguma explicação cósmica. Eles se tornam remotamente compreensíveis quando atribuídos a uma fonte demoníaca sobre-humana e sobrenatural.
Hoje, parece natural falar de sofrimento em grande escala, e com linguagem carregada de conotações cósmicas. A ideia de que forças sobre-humanas se encontram por trás dos conflitos morais é apresentada em uma esfera profundamente intuitiva, como indicam filmes populares como, por exemplo: “O senhor dos anéis” e “Homem de aço”. Contudo, por trás desses espetáculos que divertem muitas pessoas, está um fantasma que nos assombra.
Conflito e libertação
A razão mais importante para refletir cuidadosamente sobre esse conflito cósmico é a poderosa noção da libertação divina que ele transmite. Para essa teodiceia, Deus não Se tornou um executivo independente, presidindo serenamente o cosmos como um CEO no canto de uma suíte, em um prédio de escritórios, num arranha-céu, longe do embaralhado das ruas abaixo. Ele está poderosamente atuando no mundo, desafiando os agentes do mal e resistindo-os em cada uma de suas ações. Essa imagem de Deus pode ser tranquilizadora para as pessoas que se sentem impotentes diante das forças dispostas contra elas.
Há aqueles cujas perdas têm o potencial de deixá-los completamente derrotados e destituir sua vida de significado. Há pessoas, como meu professor de anos atrás, cuja doença devastadora tirou a saúde e encerrou a carreira que ele tanto amava. Também há pessoas tão escravizadas pelos vícios, que esses vícios têm esgotado suas energias e empobrecido sua vontade, a tal ponto que, na esfera dos remédios naturais ou tratamentos convencionais, nada pode ajudar. Quando falham programas de recuperação, cursos de autoajuda e medicamentos, as pessoas podem sentir que estão sob o domínio de um inimigo que possui força sobrenatural. Então, para elas, a ideia da vitória e libertação divinas pode constituir a única base para a esperança.
A certeza de que estamos ligados a um poder infinitamente superior a qualquer de seus inimigos, e qualquer um dos nossos inimigos, é uma fonte de conforto e força. Assim, a noção de um conflito cósmico, com a garantia de que Deus pode derrotar tudo que nos prejudica e ameaça, e que, finalmente, erradicará inteiramente o sofrimento, pode desempenhar um importante papel na “teodiceia prática”. Isso dá forças para aqueles que enfrentem enormes desafios ocasionados pelo sofrimento.
Referências:
1 Gregory A. Boyd, God at War: The Bible and Spiritual Conflict (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2001).
2 _______________, Is God to Blame? Beyond Pat Answers to the Problem of Suffering (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2003).
3 _______________, Satan and the Problem of Evil: Constructing a Trinitarian Warfare Theodicy, p. 247.
4 _______________, Is God to Blame? Beyond Pat Answers to the Problem of Suffering, p. 105.
5 _______________, God at War: The Bible and Spiritual Conflict, p. 291.
6 Ver Ann Taves, Fits, Trances, and Visions: Experiencing Religion and Explaining Experience From Wesley to James (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1999), p. 153-165.
7 Gregory A. Boyd, God to War: The Bible and Spiritual Conflict, p. 307.
8 Ellen G. White O Grande Conflito, p. xii.
9 Ver Sigve K. Tonstad, Saving God’s Reputation: The Theological Function of “Pistis Iesou” in the Cosmic Narratives of Revelation (Nova York: T & T Clark, 2007).
10 Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações, p. 761, 758.
11 _______________, O Grande Conflito, p. 499.
12 Gregory A. Boyd, God at War: The Bible and Spiritual Conflict, p. 61-63.
13 Ver M. Scott Pecj, People of the Lie: The Hope for Healing Human Evi (Nova York: Simon & Schuster, 1983).