Análise dos símbolos apresentados em Êxodo 30 e Apocalipse 4
A evidência de um santuário celestial no livro do Apocalipse é uma continuação histórico-profética do drama entre o bem e o mal, descrito pelo profeta Daniel 600 anos antes que o apóstolo escrevesse seu livro na ilha de Patmos. Nos oráculos do apóstolo, encontravam-se várias cenas relacionadas ao tema do santuário e ao trono de Deus no Céu, assuntos presentes nas igrejas de Filaldéfia e Laodiceia (Ap 3:12, 21). Da mesma forma, parte do mobiliário do santuário do Antigo Testamento aparece em algumas cenas celestiais: um cordeiro imolado (5:6), um altar, incenso e um incensário de ouro (8:3, 4, 5), a abertura do templo de Deus no Céu e a visão da arca da aliança (11:19). A arca está intimamente ligada ao estudo do grande Dia de Expiação, e à pregação da tríplice mensagem angélica (Ap 14).
Junto às passagens prévias do Apocalipse, que implicam a presença de um santuário celestial, a unção do próprio santuário possibilita uma proposta teológica conhecida como a inauguração do santuário no Céu e a funcionalidade do trono de Deus, mostrada no capítulo 4. Neste artigo, será brevemente analisada uma tipologia entre a unção e a dedicação do tabernáculo do deserto (Êxodo 30) com a visão do capítulo 4 de Apocalipse.
Elementos prévios à postura tipológica
É evidente que João colocou no livro de Apocalipse certa quantidade de material proveniente de Daniel, inclusive o tema santuário. Alguns autores encontram uma dependência nas ocorrências simbólicas do Apocalipse, procedentes do Antigo Testamento, que somam cerca de 31 símbolos.1 Também é observado que João pareceu usar várias estruturas literárias do livro de Ezequiel, incluindo as semelhanças e diferenças na descrição do trono de Deus.[2] Por causa da complexidade do conteúdo nas visões e profecias do Apocalipse, considera-se adequada a decisão literária de João, ao ordenar o livro de maneira temática e não cronológica. Ele escreveu suas mensagens para as gerações futuras, animando-as a esperar e proclamar a vinda de Jesus. Nesse processo de espera, o profeta dá a conhecer os eventos que a precederiam. Apesar disso, em sua obra, o exilado vidente incorporou a audiência original de seu tempo, constituída por milhares de cristãos espalhados no Império Romano do primeiro século.
O imperador Domiciano[3] decidiu se declarar deus e ser adorado como kúrios (senhor). Ele chegou a ser kúrios porque era César. Mediante a faculdade político-religiosa esse imperador teve a “facilidade” de impor adoração a ele.[4] Para fortalecer essa ideia, construiu em seu palácio do Monte Palatino um trono com diversas técnicas de arquitetura e escultura, para desse modo evocar a imagem de um trono localizado no Céu, onde seus súditos o adoravam como se fosse deus.[5] O preterismo justifica o cumprimento das profecias apocalípticas como tendo lugar durante o século 1 d. C., entre outras coisas, argumentando que o selamento do capítulo 7 ocorreu quando os cristãos conseguiram fugir ilesos do cerco a Jerusalém, no ano 66, depois da retirada de Cestio Galo e suas legiões.[6]
Para quem estuda as profecias dentro do método histórico-profético de interpretação bíblica, crendo que Deus dirige a história das nações, os eventos proféticos do Apocalipse não são confinados meramente a um passado sem valor atual, mas se desenvolvem em uma continuidade histórica que atravessa os séculos até à consumação escatológica na segunda vinda de Cristo. Para os judeus-cristãos do século 1 d.C., que viram ou presenciaram a destruição do templo de Jerusalém pelas mãos do poder romano, o ensino bíblico de um santuário no Céu, contido no livro aos hebreus e, posteriormente, no Apocalipse, encheria a vida deles de esperança, ao saberem que o verdadeiro Kúrios-Jesus ministrava no santuário celestial. Por sua vez, Apocalipse 4 focaliza a adoração ao verdadeiro Deus que está sentado no trono celestial, tema de vital importância na profecia. Antes de analisarmos a inauguração do santuário celestial e a função da arca da aliança em Apocalipse 4, é útil definirmos o termo tipologia.
Tipologia na literatura apocalíptica
Em forma geral, o temo “tipologia” pode ser visto como um ramo da hermenêutica que maneja uma realidade teológica confinada geograficamente, nesse caso, no Antigo Testamento, e de cuja realidade específica do passado são extraídas funções teológicas aplicáveis a cenas proféticas que têm um desenvolvimento universal e relacionado ao grande conflito entre o bem e o mal. Uma característica importante da metodologia tipológica é que o “tipo”, ou seja, a figura, contém pontos bíblicos que respeitem o contexto da Bíblia na execução da figura em sua aplicação universal.[7]
Tendo em mente essa definição, a cerimônia de unção inaugural do santuário do deserto, feita por Moisés e exibida em Êxodo 30 (a partir do verso 26), teria uso tipológico em Apocalipse 4. A unção e a inauguração do tabernáculo do deserto para iniciar seu serviço cerimonial seria uma tipologia do evento da unção inaugural do santuário celestial realizado por Jesus Cristo. Uma observação deve ser mantida no uso da tipologia: a função tipológica também tem seus limites quanto aos participantes e as ações deles nas cenas proféticas. Isso é compreensível, pois a tipologia designa como base uma pessoa ou evento limitado por tempo e espaço definidos. A cena celestial de Apocalipse 4 transcende essas limitações de tempo, espaço e linguagem. Comentando esse aspecto, Ellen G. White mencionou que os atores celestiais têm aparência diferente dos seres e movimentos que representam.[8]
Unção e Cristo
A palavra “unção” provém da raiz mashach, que significa untar, ungir.[9] Esse vocábulo aparece quando Moisés utilizou uma fórmula ou perfume oleoso que só podia ser aplicado na ocasião indicada por Deus (Êx 30:22-26). Mashash era empregada em diferentes funções: ungir sacerdotes antes do início de seu ministério (Nm 3:3), ungir os móveis do santuário na ocasião de sua inauguração: a fonte, a mesa dos pães da proposição, o altar, a arca da aliança (Êx 30:25-33; Lv 8:10), na unção de reis (1Sm 10:1; 16:12, 13). A evidência bíblica depreendida de 1 Samuel 16:13, 14 propõe que o óleo é um símbolo da presença e ação do Espírito Santo. Mashash identifica-se intimamente com outra palavra hebraica que é mashiachj, “Messias ungido”. Esse vocábulo identifica o ministério do Messias, Jesus, na profecia da última semana de Daniel 9.
No Novo Testamento, o verbo grego equivalente a mashash é jrio, que em Atos 10:38 significa ungir.[10] Desse termo se origina o título Jristos, ou “Cristo”. No evangelho de Mateus, a unção de Cristo por ocasião de Seu batismo, o Espírito Santo desceu sobre Ele em forma de pomba (Mt 3:13-16) para assinalar o cumprimento da profecia de Daniel 9, ou seja, quando o Messias iniciaria Seu trabalho em Israel. Essa unção do Espírito na vida de Cristo também é citada por Lucas, em Atos 10:38. Ali, é dito que “Deus ungiu a Jesus de Nazaré com o Espírito Santo”, a fim de realizar Seu trabalho em favor dos pecadores.
Essas alusões prévias à palavra “ungir” permitem sugerir o óleo da unção na inauguração do tabernáculo terrestre como símbolo do Espírito Santo. Quando a construção do santuário terrestre foi concluída, Moisés ungiu o tabernáculo com óleo santo, inaugurando assim seu serviço cerimonial. Com o ato da unção mosaica aplicada ao santuário do deserto, foi iniciado o ministério diário do sacerdócio levítico e aarônico. Esse acontecimento inaugural dos serviços do tabernáculo terrestre estaria tipificando a inauguração do ministério sacerdotal de Cristo no santuário celestial, bem como também seria evidenciado pela descida do Espírito Santo sobre a nascente igreja cristã.
A unção e o santuário celestial
Nessa postura, o que ocorreu segundo Êxodo 30:26 em diante indicaria uma tipologia explicada em Apocalipse 4. Em Sua ascensão, depois de haver ressuscitado, Cristo Se apresentou, não ante uma arca de madeira de acácia contendo dois querubins com asas entrecruzadas de um extremo a outro, mas entrou no lugar santíssimo, diante do trono de Deus o Pai (AP 4:2-11). Nessa perspectiva cênica, Apocalipse 4 e a primeira parte do capítulo 5 formam parte da alusão ao trono. Ali, Cristo é identificado de maneira simbólica com um cordeiro imolado. É interessante notar que, nessa visão, o Espírito Santo é descrito em uma metáfora funcional numérica com sendo os “sete espíritos de Deus” vistos como “lâmpadas de fogo” (v. 5).
Nesse modelo tipológico, a unção do santuário celestial e o ministério sumo sacerdotal de Cristo no Céu, estariam em evidência mediante a unção ou derramamento do Espírito Santo na vida de Seus seguidores na Terra (Lc 3:16; At 2:1-4). Da mesma forma que Moisés entrou no lugar santíssimo e dedicou a arca da aliança, o Filho de Deus Se apresentou diante do trono do Pai. Ali, Jesus explicou ao Universo que ainda não podia receber a coroa do reinado universal, porque primeiro deveria interceder pela humanidade.[11] Depois dessa cena, o Deus-Homem Jesus Se voltaria ao lugar santo para iniciar Seu ministério diário até o ano de 1844, quando entrou no lugar santíssimo para iniciar a última parte de Seu sacerdócio em favor da igreja e dos pecadores.
O trono e o grande conflito
O termo “trono” aparece onze vezes em Apocalipse 4. É viável encontrar uma relação de funcionalidade tipológica entre o trono de Deus e a arca do concerto, mediante termos como justiça, juízo e misericórdia. A arca do concerto continha dois elementos indissolúveis que ilustravam o caráter da Deidade: (1) o propiciatório e (2) o decálogo. O primeiro indicava o lugar sobre o qual o sacerdote aspergia o sangue do animal sacrificado. A tradução literal da New King James Version para o termo “propiciatório” é “mercy seat”, ou seja, “assento de misericórdia”.
O segundo objeto que tem que ver com o caráter da Deidade é o decálogo, que se encontrava dentro do móvel da arca e sob o propiciatório (Êx 40:20-22). O propiciatório e o decálogo interagiam intimamente com os termos misericórdia, juízo e justiça, inferidos no cerimonial do Dia da Expiação de Levítico 16. Esses substantivos igualmente se acham escritos no Antigo Testamento, como presentes no trono de Deus no Céu. Disse o salmista: “A retidão e a justiça são os alicerces do Teu trono; o amor e a fidelidade vão à Tua frente” (Sl 89:14). Os termos anteriores provenientes dos Salmos indicam uma correspondência de atividade tanto na arca do concerto como no trono de Deus no Céu.
Por sua vez, o conceito do trono de Deus é observado no livro do profeta Isaías, em que o tema do grande conflito é exposto, quando o inimigo de Deus fala de suas pretensões: “Subirei aos céus; erguerei o meu trono acima das estrelas de Deus; eu me assentarei no monte da assembleia, no ponto mais elevado do monte santo. Subirei mais alto que as mais altas nuvens; serei como o Altíssimo” (Is 14:13, 14).
A promessa
O derramamento do óleo na ocasião da unção do santuário terrestre tipifica, nesse caso, o começo do ministério sacerdotal de Cristo no santuário celestial. Naquela ocasião, o óleo da unção também apontou para a descida do Espírito Santo, que capacitou a igreja com poder para o testemunho pessoal e a atividade missionária. Tal unção não foi exclusiva para esse período histórico. A promessa do Espírito Santo, feita em João 14:26; 16:8-11, 13, por exemplo, é igualmente anunciada para os cristãos dos dias atuais. É nosso privilégio buscar diariamente o cumprimento dessa promessa.
À medida que estudamos o ministério sumo-sacerdotal de Cristo e entendemos que Sua permanência no lugar santíssimo chegará ao fim, é necessário e reconfortante lembrar sempre de que “Miguel, o grande Príncipe… está ao lado dos filhos de Teu povo”.
Referências:
1 J. H. Mulholland, “Tese doutoral defendida no Seminário Teológico de Dallas”, 1959, v. 2, p. 376-379.
2 Ian Boxall, Tue Revelation of Saint John (Peabody: Henrickson, 2006); Beate Kowalski, Die Rezeption des Propheten Ezechiel inder Offrenbarung des Johannes (Stuttgart: Atholisches Biblewerk, 2004).
3 J. R. Harrison, Paul and the Imperial Gospel at Tessaliniki (JSNT, 2002), p. 25.
4 Gerhard Kittel, Theological Dictionary of the New Testament, 1965, p, 1056.
5 Diana E. E. Kleiner, Takes a City: Foundation of Urbanism in Italy (Palatine Hill. Lecture 13. Yale Online Courses: Spring, 2009).
6 R. Thomas & K. Barker, Revelation 1-7: An Exegetical Commentary (Chicago, IL: Moody, 1992), p. 465.
7 O. L. Johnson, Bible Typology (Prestonsburg: Reformation Publishers, 2000); Richard M. Davidson, Typology in Scirpture: A Study of Hermeneutics Typos (Berrien Springs: Andrews University Press, 1981).
8 Ellen G. White, Manuscrito 4, 1883.
9 Bottler G. Johnson, Theological Dictionary of the Old Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 2003).
10 Gerhard Kittel, Op. Cit., v. 9, p. 483-493.
11 Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações, p. 833.