Pais e filhos – Uma reflexão a respeito da paternidade pastoral

De acordo com a versão Almeida Revista e Atualizada, a palavra pai ocorre 1.606 vezes nas Escrituras. Não é sem razão que o termo aparece tanto na Bíblia. Deus propositadamente planejou a paternidade humana para ser uma ilustração de seu relacionamento conosco. Ao criar a família e a paternidade, o Senhor pretendia que pudéssemos compreender melhor quem Ele é. Longe de ser algo arbitrário ou sem importância, identificá-Lo como Pai tem um significado especial.

Nosso relacionamento com Deus e nossa capacidade de nos sentirmos dignos de Seu amor dependem muito da nossa maneira de entender Sua paternidade. Se enxergamos Deus como Pai amoroso, sábio e atencioso, então seremos capazes de confiar nEle, mesmo quando não compreendemos o que Ele está fazendo em nossa vida. Por outro lado, se nós O vemos com desconfiança ou indiferença, então, será muito difícil nos relacionarmos com Ele. E isso tem relação direta com nossa maneira de nos relacionarmos com nosso pai terrestre.

Muitos de nós provavelmente tenhamos crescido com pais que não foram aquilo que gostaríamos que fossem. Pais frios, distantes, autoritários, cheios de raiva, críticos e controladores. Pais que foram alcoólatras, depressivos ou fisicamente abusivos. Pais cujas lutas internas os consumiam tanto que não tinham forças para cuidar das necessidades dos filhos. Certamente, tais condições comprometeram a habilidade dos filhos em confiar em Deus como Pai celestial. Até o melhor dos homens, com a melhor das intenções, não consegue ser o pai ideal. Fracassamos muitas vezes em ser aquilo que o Senhor gostaria que fôssemos. Agimos de modo egoísta e pecador. Falhamos em amar nossos filhos como Deus nos ama.

Como é, então, ser filho de pastor, um representante de Deus na Terra? Alguém que se dedica 24 horas por dia a ganhar pessoas para o Céu? Alguém que sabe explicar as Escrituras Sagradas e que, semanalmente, assume um lugar público para falar em nome do Senhor?

Ser pastor é muito desgastante e as exigências do ofício trazem lutas singulares à sua família. Sua esposa carrega um grande fardo.Contudo, geralmente se sente chamada para o ministério também. Algumas aceitaram casar-se com um ministro sabendo o que iam encontrar pela frente. Por outro lado, os filhos do pastor não pediram para nascer numa família pastoral; de fato, uma família bem diferente das outras existentes na comunidade.

Uma vida diferente

Muitas vezes, o filho de pastor recebe cobranças e exigências que lhe são muito pesadas. Ele vive em uma condição diferente. O tempo todo divide seu pai com muitos membros e igrejas, que parecem ser sempre mais importantes ou ter questões mais urgentes a tratar do que ele. Ser filho de pastor é ter um pai admirado e elogiado na igreja, e saber que, muitas vezes, em sua convivência familiar, ele é bem diferente, nas maneiras, nas palavras e no tom de voz.

Ao contrário de outras famílias, os filhos de pastor costumam ter um pai que trabalha meio período em casa, e que não está disponível para eles. Boa parte desse tempo, o ministro fica em seu escritório pesquisando, estudando, preparando sermões e palestras. Seu celular toca e recebe mensagens o tempo todo. Em algumas ocasiões, inesperadamente, o pastor precisa sair para ajudar alguém ou resolver algum problema urgente do distrito. Com essa dinâmica, o filho de pastor se acostuma a “viver” na igreja. O difícil é quando o pai fica tão mergulhado em sua missão que passa a tratar os filhos como membros de sua congregação, e não como seus filhos!

Filhos de pastor experimentam frequentemente a pressão das expectativas colocadas sobre eles, seja pela igreja ou pelos próprios pais. O casal pastoral espera que os filhos sejam exemplares e transmitam a imagem de que são uma família feliz. Essa imposição de ser “bons filhos, bons exemplos, bons cristãos e bons alunos” gera sentimentos de isolamento e conflitos internos. Como consequência, em diversos casos, eles acabam ficando confusos sobre quem são ou quem podem ser realmente.

Em decorrência dessas situações, não é de admirar que, na adolescência ou na vida adulta, alguns filhos de pastor se rebelem ou reajam negativamente ao que viveram em casa. Vários autores sugerem que existe uma “síndrome do filho do pastor”.1 Isso significa que alguns filhos, quando adultos, vão rejeitar a religião e/ou a igreja a que o pai pertence. É importante dizer que, em muitos casos, eles seguem os passos paternos, como ocorreu com os filhos de Martin Luther King e Billy Graham, que se tornaram pastores.

A vida de um filho de pastor é marcada por uma dinâmica social diferente daquela vivenciada por crianças da sua idade. Ele participa de estudos bíblicos, palestras e reuniões administrativas desde pequeno. Além disso, envolve-se em várias atividades sociais,  sempre com os membros do distrito de seu pai: piqueniques, acampamentos, clubes de desbravadores, conjuntos, corais, aniversários, casamento e até mesmo funerais. Tem a oportunidade de visitar lares diferentes e, às vezes, sua casa fica aberta aos membros que fazem dela uma extensão do próprio lar. No entanto, tudo isso sem ter escolha: tem que ir, tem que participar, tem que sorrir e ser bem-educado!

Em virtude das frequentes mudanças, alguns filhos de pastor podem fazer amizade com mais facilidade. Afinal, estão sempre conhecendo pessoas novas. Outros, porém, podem ter muita dificuldade em fazer amigos, porque sempre precisam recomeçar do zero, temendo logo perdê-los. Por falar em mudanças, esse é outro desafio: começar de novo em uma nova igreja e uma nova escola, sem conhecer ninguém e sendo conhecido por todos: “aquele é o filho do pastor”.

Por fim, ser filho de pastor pode significar não ter uma identidade própria, sendo apenas reconhecido como “o filho do pastor”. É ser tratado pelas igrejas como uma extensão de seu pai: precisa pregar, cantar, abrir e fechar as portas, acender e apagar as luzes, operar o som, cuidar das crianças pequenas e participar ativamente da Escola Sabatina.

Influências da paternidade

Muitos pastores não se dão conta das dificuldades pelas quais seus filhos passam. Nessa posição, entendem que assim como foram chamados para servir a Deus no ministério, seus filhos naturalmente vão aceitar e assumir essa vocação também. Alguns consideram que esse seja o sacrifício a que seus filhos devem se submeter para ajudar a apressar a vinda de Jesus. Existem também aqueles que percebem o sofrimento e as dúvidas dos filhos e até os acolhem, mas em casa, não em público. Para esses, tais situações difíceis ajudam a forjar o caráter e a tornar os filhos mais resilientes.

É necessário olhar com mais profundidade para a situação e o sofrimento desses filhos. Lamentavelmente, em certas situações, eles ficam expostos à maldade dos que nutrem sentimentos negativos em relação ao pastor. Há casos em que eles sofrem calados a discriminação e os ataques covardes de membros descontentes, para não prejudicar o trabalho do pai.

Alguém pode se perguntar: “Os filhos de outros profissionais de influência também sofrem discriminação e bullying. Por que com os filhos de pastor seria diferente?” Por um simples fato: o ministério do pastor está a serviço de Deus. Muitos filhos de pastor se sentem feridos quando existem problemas entre membros da igreja e seus pais. Eles percebem o modo pelo qual as pessoas os tratam e concluem que essa “religião” evidenciada não pode ser verdadeira. Especialmente na adolescência, os filhos enxergam a hipocrisia e começam a questionar a fé. É nesse ponto que os problemas de trabalho do pai, diferentemente de outras profissões, podem prejudicar o relacionamento dos filhos com Deus.

A família ministerial não vive uma vida fácil. De modo geral, o ministro busca viver sua vocação atingindo os objetivos propostos por sua denominação e suas diferentes igrejas. Alguns pensam que os filhos estejam suficientemente atendidos pelos cuidados da mãe e de uma boa educação cristã. Desse modo, sentem-se livres para mergulhar em seu trabalho, que está relacionado com a obra do Senhor. Tendo essas considerações em perspectiva, e voltando ao argumento inicial deste artigo, qual é a imagem de Deus que o filho de pastor está formando? Que modelo de homem, o pai pastor está oferecendo?

Segundo a Associação Americana de Psicologia, as memórias de uma convivência satisfatória com o pai durante a infância estão diretamente relacionadas com a capacidade de enfrentar o estresse do dia a dia. Essa pesquisa indica que o pai desempenha um papel fundamental na saúde mental dos filhos, e isso é visível na idade adulta. Os homens que relataram ter mantido um bom relacionamento com o pai durante a infância tendem a ser menos impulsivos em sua maneira de reagir aos eventos estressantes do cotidiano do que aqueles que relataram relacionamentos menos significativos.2

Raeburn cita uma série de estudos que ligam o envolvimento paterno ao desenvolvimento intelectual, emocional e social das crianças. Os filhos que se sentem amados e nutridos pelo pai têm a autoestima comparativamente mais alta e menores riscos de desenvolver problemas mentais ao longo da vida. Meninas que crescem na presença de um pai amável e que as apoiam, tendem a iniciar a puberdade mais tarde e são menos inclinadas a comportamentos sexuais arriscados, se comparadas às filhas de pais ausentes, ou com relacionamentos distantes.3

As consequências da ausência da figura paterna ou de uma relação insalubre entre pai e filho podem levar a dificuldades de adaptação às regras sociais, bem como a problemas nas relações interpessoais e de identificação sexual. Filhos de pastor precisam da presença e assistência do pai durante seu desenvolvimento. Eles precisam de um pai, não de um pastor nem de um pai-pastor.

Mesmo que você não tenha tido uma boa referência paterna em sua vida, é possível olhar para trás e encontrar figuras masculinas que preencheram aspectos da paternidade que não foram vivenciados com seu próprio pai. Pense em pessoas que podem ter sido modelos para você. Um avô, o pai de algum amigo, o irmão mais velho, um líder da igreja ou um empregador. Muitos ministros escolheram essa ocupação influenciados por algum pastor que marcou sua vida. Essas figuras masculinas podem servir como referência do que é ser um bom pai, a fim de que você avalie sua paternidade bem como sua relação com o Pai celestial.

Paternidade na prática

Alguns pontos importantes sobre a relação pastor e filhos merecem reflexão:

Um pai, não um pastor: Sem anular o fato de que o pai é o sacerdote do lar, os filhos querem um pai que brinque com eles, que os proteja, que os faça rir, que ame sua mãe, abrace, dê atenção, ensine a trocar uma lâmpada, fazer uma comida gostosa ou a manutenção do carro. De que adianta o pastor ter participado da conversão de centenas de pessoas, se ele não tiver sido um pai para seus filhos? Além disso, que modelo de pai os filhos levarão adiante se o pastor for mais ausente do que presente?

Conversas, não sermões: Sermões podem ser ótimos para compartilhar conceitos bíblicos com a igreja, mas não são efetivos para se comunicar com os filhos. Pregar aos filhos o tempo todo vai confundir a compreensão deles acerca das Escrituras e favorecer uma opinião negativa das orientações bíblicas. É fundamental conversar sobre a vida de formas interessantes, que abram a mente e estimulem novas descobertas. É no “bate papo” que as pessoas se conhecem mais profundamente. Esses diálogos devem ocorrer sempre, desde que os filhos são bebês. Aliás, eles precisam reconhecer a voz do pai sem o microfone!

Tenha interesse no que lhes interessa: Pode ser que você não goste dos vários personagens de TV, das séries ou dos cantores populares com os quais seus filhos têm contato e com quem se identificam; mas, você sabe quem são eles? Você já foi assistir a um jogo de futebol ou uma aula de natação de seus filhos? Você participa do lazer deles? Quando você se interessa e se envolve com o que eles gostam, demonstra que os ama e que se importa com eles.

Conheça-os: Conforme os filhos crescem, parece que fica mais difícil passar tempo com eles. A convivência com adolescentes e jovens adultos inseridos em um mundo contemporâneo às vezes tem gerado pontos de tensão em casa. Conheça seus filhos, não seja crítico em demasia e não exagere nas cobranças. O que eles pensam? O que planejam para o futuro? Você já saiu sozinho com seu filho para tomar um lanche? Já foi ao shopping passear com sua filha? Já aproveitou uma segunda-feira para assistir com seus filhos a algum filme escolhido por eles? Muitas vezes eles não querem só lazer, querem estar próximos, conversar sobre amigos, aulas de matemática e, quem sabe, até sobre assuntos sentimentais.

Coerência: Ninguém o chamará de hipócrita mais rápido do que seus filhos ou sua esposa. Pregar sobre amor e graça depois de ter passado a semana toda brigando com a família e maldizendo os líderes da igreja vai parecer o quê para seu filho sentado no último banco da igreja? Para sua família, sua interação com Deus e com Sua obra fala muito mais alto do que qualquer sermão.

Graça para falhar: Ninguém é perfeito. Muitos pastores cobram altos níveis deperfeição de seus filhos. Entendo que desejem o melhor para eles, mas essa pressão gera mais ressentimento e raiva do que motivação. Todos nós erramos, somos pecadores, temos dúvidas e inseguranças. À semelhança da parábola do filho pródigo, será que os filhos podem sair de casa, voltar e ainda assim serem recebidos pelo pastor?

Estamos próximos da vinda de Jesus, e Satanás assedia violentamente as famílias pastorais. Quando os filhos de pastor sabem que seu tempo com o pai é uma prioridade, isso supera todas as outras dificuldades, e é significativo o sentimento de segurança que eles desenvolvem. Os membros da igreja também devem se lembrar de que ajudar o pastor a cuidar de sua família será de grande benefício para a própria congregação, pois, um ministro que está em paz no lar, servirá de modo mais eficaz e feliz.

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Referências

1. R. Dunham, “Pastor’s kids syndrome”, Enrichment Journal, <enrichmentjournal.ag.org>, acesso em 25/4/2016; J. E. Norrell, “Clergy family satisfaction”, Family Science Review, <familyscienceassociation.org>, acesso em 18/4/2016; C. Ranginha e C. Bruscagin, “Compreendendo os significados das expectativas familiares para jovens filhos de pastores da Igreja Adventista do Sétimo Dia” (monografia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, dezembro de 2015).

2. American Psychological Association, “Childhood memories of father have lasting impact on men’s ability to handle stress”, <apa.org>, acesso em 25/4/2016.

3. P. Raeburn, “How dads influence teens’ happiness”, Scientific American, <scientificamerican.com>, acesso em 25/4/2016; B. J. Ellis et al., “Does father absence place daughters at special risk for early sexual activity and teenage pregnancy?” Child Development, <ncbi.nlm.nih.gov>, acesso em 25/4/2016; M. Regnerus e L. B. Luchies, “The parent-child relationship and opportunities for adolescents’ first sex”, Journal of Family Issues, <jfi.sagepub.com>, acesso em 25/4/2016.