O oitavo império: novas hipóteses para os símbolos de Apocalipse 17
Vanderlei Dorneles
Este artigo analisa os símbolos proféticos de Apocalipse 17 com o objetivo de explorar as relações entre a besta escarlate, a primeira besta de Apo- calipse 13 e o dragão de Apocalipse 12. O estudo é feito à luz do contexto das sete pragas e do paralelo construído entre o clímax escatológico provido por Apocalipse 13 e 16-17, paralelo este usado como base para se sugerir uma re- lação entre a besta semelhante a leopardo e a meretriz, e entre a besta de dois chifres e a besta escarlate e seu oitavo rei. Em seu contexto imediato, o texto de Apocalipse 17 é considerado como uma espécie de juízo de investigação seguido da execução de sentença sobre a meretriz (Ap 18). O oitavo rei é distinguido do poder religioso e relacionado com os poderes políticos e militares.
Palavras-chave: Apocalipse 17; Oitavo Rei; Interpretação bíblica; Besta
his paper focuses on the analysis of the prophetic symbols of Revelation 17 with the aim to find relations between the scarlat beast, the first be- ast of Revelation 13 and the dragon of Revelation 12. The study is made
on the context’s basis of the seven plagues and the built parallel between the eschatological climax from Revelation 13 and 16-17, the same used as ground to suggest a relation between the leopard beast and the prostitute, and between two horns beast and the scarlat beast and its eighth king. At its very context, the
Brasileira e professor no curso de Teologia da Faculdades Adventista da Bahia. E-mail: [email protected]1 Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. Editor na Casa Publicadora
text of Revelation 17 is regarded as a kind of investigative jugdement followed of the sentence execution over the prostitute (Ap 18). The eighth king is set apart from the religious power and is related with military and politic powers.
Keyword: Revelation 17; Eighth King; Biblical Interpretation; Beast.
O capítulo 17 é uma das seções mais desafiadoras e, ao mesmo tempo, mais fascinantes do livro do Apocalipse. Um dos anjos que têm as sete taças da ira de Deus (Ap 16) chama o profeta para uma nova sequência de visões, as quais se seguem à narrativa das pragas. O anjo inicia a comunicação com o anúncio: “Mostrar-te-ei o julgamento da grande meretriz” (Ap 17:1).
A identidade da meretriz não tem levantado tantas discussões quanto a da besta e de suas cabeças. Uma vez que uma besta também de sete cabeças e dez chi- fres é descrita em Ap 13 e se torna uma figura predominante, a identificação da entidade representada em Apocalipse 17 oferece grandes dificuldades. Uma in- terpretação corrente tem sido que a besta em questão aponta para a mesma entidade representada pelo dragão de Apocalipse 12 e a besta de Apocalipse 13, que seria o império romano, cuja capital foi considerada a “cidade das sete colinas”, como sugere o verso 9. Essa interpretação preterista é abraçada “pela maioria dos exegetas” (JOHNSON, 1981, v. 12, p. 554)2 e resulta numa negação do dom profético na interpretação das visões do grande conflito narradas no livro.
Outra linha de interpretação vê a besta de Apocalipse 17 como símbolo dos poderes mundiais e o oitavo rei como um retorno do sétimo poder, ou seja, de “Roma papal” (STEFANOVIC, 2002, p. 515; NICHOL, 1980, v. 7,
- 854-857). Nesse caso, o “oitavo rei” indicaria a fase final de atuação dessa entidade, após a restauração de seus poderes perdidos na revolução francesa, em 1798. Uma terceira interpretação relaciona a besta escarlate (Ap 17) ao dragão vermelho (Ap 12), sendo, portanto, uma referência ao próprio diabo em sua luta contra Deus e seu povo, no clímax do grande conflito (MÜL- LER, 2005, p. 39). Outra alternativa ainda pontua que o “oitavo rei” seria a própria besta “escarlate” e representa uma “confederação de poderes políti- cos e militares” em oposição a Deus no tempo do fim (PAULIEN, 2008, p. 136, 212, 218; NICHOL, 1980, v. 7, p. 851).
2 Johnson acredita que a interpretação de Ap 17 influencia a interpretação de todo o livro.
Ainda uma interpretação mais popular vê a besta escarlate como sendo Roma papal e considera que a criação do estado do Vaticano, em 1929, pelo Tratado de Latrão, corresponderia à cura da ferida da besta de Apocalipse 13. Os sete reis representados pelas cabeças da besta seriam sete papas e o oitavo, portanto, seria um último papa que guardaria certas relações com seu ante- cessor (PAULIEN, 2008, p. 215, 216).
A multiplicidade de interpretações reflete a complexidade da visão. Um dos desafios está no fato de diversos símbolos apocalípticos serem descri- tos como “besta” (Ap 11:7; 13:1, 11; 17:3). A palavra grega therion (“bes- ta”) ocorre 38 vezes no livro de Apocalipse, sendo traduzida sempre como “besta”, exceto em 6:8 (“feras”). Apesar de quatro bestas principais serem mostradas a João, em geral as referências à besta são encaradas como sendo àquela de Ap 13:1, a segunda das quatro.
As interpretações que identificam a besta escarlate com a primeira besta de Apocalipse 13:1 ou Roma papal esbarram num problema claro: por fim (17:16), a besta escarlate e os “reis da terra” odeiam e destroem a meretriz (o poder religioso romano). A “confederação de poderes seculares” (PAULIEN, 2008, p. 212) em vez de ser a besta escarlate pode representar a pró- pria coalizão formada pela besta e os “reis da terra”. Assim, uma definição mais objetiva da entidade é necessária.
Um aspecto a ser levado em conta é o contexto das sete pragas no qual se visualiza a meretriz e a besta escarlate. A ideia de juízo é clara nessa seção do livro. Além disso, é preciso relacionar essa visão (Ap 17) com outras vi- sões do livro na busca por elementos simbólicos paralelos. Este artigo explo- ra as evidências para as seguintes hipóteses: 1) a meretriz e a besta escarlate representam entidades distintas, religiosa e política, respectivamente; 2) o oitavo rei deve apontar para uma entidade política histórica e concreta no clímax do conflito; 3) o oitavo rei pode ser a mesma besta de dois chifres de Apocalipse 13:11; e 4) Ap 17 mostra um juízo de investigação.
O Apocalipse é um livro do Novo Testamento, mas enraizado em ima- gens e linguagens do Antigo Testamento. Assim, em vista das inúmeras refe- rências, deve-se buscar um pano de fundo para seus principais símbolos na própria Escritura hebraica.3
3 Paulien argumenta que “o Apocalipse não pode ser entendido sem contínua referência ao AT”, pois ele é um “perfeito mosaico das passagens do AT”. As recorrentes referências ao AT no Apocalipse indicam que ele é a principal chave para abrir o significado dos símbolos do livro. O AT provê os meios para “decodificar a mensagem do Apocalipse” (PAULIEN, 1992, v. 1, p. 80).
A visão
Apocalipse 17 se constitui de três partes principais: a fala do anjo (v. 1, 2); a visão dos símbolos (v.3-6); e uma nova fala do anjo (v. 7-18). A visão é claramente simbólica, mas as duas falas do anjo devem ser consideradas como explicação e, portanto, são literais e temporais, no sentido de que des- vendam os símbolos e ocorrem no tempo e nas circunstâncias do profeta (PAULIEN, 2008, p. 214, 215). O anjo usa os verbos no passado ao tratar da identidade da meretriz em termos de seus pecados. Com ela se “prostituíram os reis da terra” e se “embebedaram os que habitam na terra” (v. 2). A pros- tituição indica idolatria (ver Ez 16, 23, Jr 51).
Na segunda fala, ao tratar com a identidade da besta, o anjo usa verbos nos três tempos fundamentais.4 Ele diz que “caíram” cinco dos “sete reis”, um “existe” e outro ainda viria (v. 10). Também diz que os “dez reis” ainda não tinham recebido reino, mas receberiam (v. 12). E completa: esses dez reis e a besta “pelejarão” contra o Cordeiro (v. 14) e “odiarão” a meretriz (v. 16).
Juízo de investigação
Na estrutura do livro, a visão de Apocalipse 17 faz parte do conjunto de visões relativas às sete pragas (Ap 15:5–18:24), que começa com uma cena do santuário celestial5 em que o término da mediação é indicado (Ap 15:5-8). Essa seção mostra o juízo de Deus sobre os “portadores da marca da besta” (16:2; cf. 14:9, 10) e sobre a meretriz (Ap 17 e 18). A vingança divina sobre a “besta”, o “falso profeta” e o “dragão” ocorre mais tarde (Ap 19:20, 21; 20:10).
Uma vez que o anjo que fala a João é um dos “que têm as sete taças”, o “julgamento” pode ser uma explicação relativa às pragas. Todas as pragas são narradas em linguagem literal, exceto a sexta (Ap 16:12-16), que fala do secamento do rio Eufrates, o que constitui um pano de fundo tirado da história do cativeiro babilônico. Isso sugere que essa praga seja o conteúdo acerca de entidades por virem suporta a afirmação de que toda explicação é dada “no tempo do profeta” (ver PAULIEN, 2008, p. 214, 215; STRAND, 1979, p. 54). O uso dos tempos ver- bais em Daniel provê uma base para esse princípio (ver Dn 2:31-35 e 2:36-44; 7:1-15 e 7:16- 27; 8:3-12 e 8:13-14, 19-25; 9:25-27). Exceto quando identifica os símbolos com as entidades representadas (“estes grandes animais, que são quatro, são quatro reis” (Dn 7:17), ele usa o verbo no futuro de forma consistente (“que se levantarão da terra” [Dn 7:17, u.p.]).4 O uso consistente do modo verbal futuro nas explicações feitas por anjos ou por terceiros
5 Richard Davidson diz que “todo o livro [do Apocalipse] é estruturado pela tipologia do santuário” (DAVIDSON, 1992, v. 1, p. 112; ver também STRAND, 1992, v. 1, p. 35-49). explicado na visão subsequente. Paulien diz que Ap 17 pode ser considerado “uma exegese” (PAULIEN, 2008, p. 208) de Apocalipse 16:12-16, devendo ser considerados uma unidade.
Assim, na sexta praga, a queda da Babilônia mística é representada pela queda da Babilônia antiga, quando Ciro desviou as águas do Eufrates (ver Is 44:27; Jr 50:38; 51:36; Heródoto, The Histories, I.191; NICHOL, 1980, v. 4,
- 265, 533, 794; RAWLINSON, 1859, p. 424; POTTS, 1996, p. 22-23) e surpreendeu Belsazar em seu último banquete (Dn 6).
A sexta praga sugere o desfecho do Armagedom (Ap 16:16), uma luta dos poderes terrenos contra os fiéis de Deus. No auge desse conflito, Deus interfe- re para livrar Seu povo, provocando a queda da Babilônia, o que vai confundir a coalizão político-militar e religiosa dos oponentes. A queda do poder religio- so dessa coalizão pode ser, portanto, o efeito da sexta praga, a qual é explicada em detalhes literais em Apocalipse 18 (ver Ap 18:2, 8, 9; ver Ap 17:16).
Isso permite considerar a visão da queda da Babilônia como uma se- quência de juízo de investigação6 seguido de execução de sentença. Assim, “Ap 17 trata primariamente com a sentença [v. 1, krima, ‘condenação’, ‘sen- tença’, ‘punição’] contra a Babilônia, e Ap 18 descreve a execução [v. 10, krisis] dessa sentença” (NICHOL, 1980, v. 7, p. 864).
No contexto do grande conflito, o caráter de Deus é vindicado. Por isso, a fim de legitimar a punição da meretriz, diante do universo, Deus investiga a situação com uma testemunha terrena antes de executar a sentença.7 Assim, o capítulo 17 apresenta um expediente de investigação, com a descrição dos pecados da meretriz (v. 2, 4). O capítulo 18, por sua vez, descreve a punição: a meretriz se torna covil de “demônios” e de “aves imundas” (v. 2), sofre os flagelos de “morte, pranto e fome” e é consumida no fogo (v. 8).
Os resultados dessa sentença repercutem até o Céu. Após a visão do julgamento da meretriz, o profeta ouve uma voz de “numerosa multidão” no Céu, que diz: “Verdadeiros e justos são os Seus juízos, pois julgou a grande meretriz” e “das mãos dela vingou o sangue dos Seus servos” (Ap 19:1, 2).8
7 Um expediente de investigação antes da execução de uma sentença é comum na Bíblia (ver Gn 3:9; 4:10; 6:5; 11:5; 19:1; HASEL, 2011, p. 908-911, 935).6 Paulien entende que “o santuário do AT e seus rituais exercem uma função estrutural na organização do livro do Apocalipse” (PAULIEN, 2004, p. 124).
8 A meretriz de Apocalipse 17 reproduz a figura de Jezabel: ambas praticam prostituição (2Rs 9:22; Ap 17:2, 4, 5); derramam sangue de santos e profetas (2Rs 9:7; Ap 17:6; 18:20, 24); e têm a carne comida (1Rs 21:23; 2Rs 9:36; Ap 17:16).
Identidade da besta
Em seus aspectos estruturais, a besta de Apocalipse 17 se relaciona com o dragão vermelho (12:3) e com a besta de Apocalipse 13. A relação entre a besta escarlate e o diabo não deve ser de identificação, já que animais, bestas e chifres representam poderes políticos seculares (ver Dn 7:17, 24, 8:20, 21). João usa 13 vezes o substantivo gr. drákon, “dragão”, e 4 vezes ophis, ser-
pente, de forma intercambiável em referência ao diabo. O uso desses termos no AT pode sugerir o que estava na mente de João ao usar o substantivo drákon e ao descrever os três animais de sete cabeças e dez chifres. Os elementos mais predominantes do dragão de Apocalipse 12 e das bestas de Apocalipse 13:1 e 17
são as sete cabeças e os dez chifres. De forma que as três figuras podem ser vis- tas como um mesmo símbolo que se reconfigura em cada novo aparecimento. Nas três visões, a estrutura é a mesma, mas ela recebe alterações de detalhes de acordo com o contexto enfocado em cada visão.
A figura do dragão, como representação das forças opositoras a Deus, é comum no AT, assim como a da serpente. Curiosamente, o dragão é relacio- nado ao Egito e a Babilônia, dois impérios presumivelmente representados nas cabeças da besta (Ap 17). No protoevangelho, o Filho da mulher esmagaria a cabeça da “serpente”, heb. nachash (Gn 3:15, ophis, LXX). No êxodo, Deus esmagou a cabeça de tannyin (drákon, na LXX; Sl 74:13, 14; Is 51:9; ver Ez 29:3; 32:2), que é traduzido por “monstro marinho”, “dragão” e “serpente”. Babilônia é chamada de tannyin (drákon, na LXX), o qual esmagou Judá, mas que seria destruído pelo Senhor (Jr 51:34, 36, 37). No dia do Senhor, Ele es- magará tannyin (drákon, na LXX) e o livyathan (drákon, na LXX), bem como a “serpente”, que é nachash (ophis, na LXX; Is 27:1) de forma definitiva (Is 11:11 menciona especificamente o Egito, a Assíria e Babilônia [“terra de Sinar”], como poderes a serem atingidos no dia do Senhor). No Apocalipse, a salvação é consumada quando o “dragão” (grego drákon) ou a “serpente” (grego ophis) que foi expulso do Céu (12:7-9) e perseguiu a mulher (12:17) for derrotado por Cristo no “lago de fogo” (20:2, 10).9
Se a figura descrita por João nos capítulo 12, 13 e 17, como um dra- gão ou uma besta, é uma reprodução da figura de tannin ou do livyathan (o monstro de sete cabeças da mitologia cananeia que representava as forças do “serpente”, “monstro marinho”, e o heb. livyathan, que é “dragão”, “leviatã”, “monstro ma- rinho”. Usa também ophis 29 vezes, para traduzir o heb. nachash, “serpente” ou “cobra”, e o heb. epheh, “víbora” ou “cobra”.9 A LXX usa o substantivo gr. drákon 30 vezes para traduzir o heb. tannin, que é “dragão”,
mal [ver NICHOL, 1980, v. 4, p. 206]), e de ophis do AT, então a própria Bí- blia provê claramente a identificação para duas das entidades representadas nas cabeças do monstro: Egito e Babilônia.10
Caso João tivesse em mente o tannin e o livyathan do AT, como repre- sentação das forças satânicas, ao usar os termos drákon e therion para descre- ver as feras que viu, a reconfiguração desse símbolo nas visões de Apocalipse 12, 13 e 17 ocorre em função de uma nova perspectiva visualizada em cada visão. No cap. 12, o foco é o império romano, ou a sexta cabeça; no 13, é o império dos papas, a sétima cabeça;11 e no 17, o foco seria o clímax esca- tológico, com o oitavo rei, ou um foco amplo que cobriria toda a história, levando-se em conta a perspectiva de juízo de investigação já sugerida.
Nas três fases mostradas a João, o poder por trás das entidades represen- tadas é o próprio Satanás, agindo por meio de um poder terreno e histórico. Assim, o poder satânico materializado num império perseguidor parece ser a realidade representada pela figura da besta e do dragão, sendo que esse poder levanta-se e cai a cada novo império.12 Que a estrutura básica do símbolo possa ser a mesma é indicado no fato de que o “dragão vermelho” luta contra Cristo no período do império romano (12:4), persegue a igreja durante o período do papado medieval (12:13, 14) e o remanescente no fim dos tempos (12:17). Em cada uma dessas fases, uma diferente cabeça do monstro está em atuação (Ap 13:3 diz que “uma de suas cabeças” foi ferida de morte, naturalmente a sétima,
11 A afirmação do anjo de que o sétimo reino (Roma papal) teria de durar “pouco” (1.26010 A interpretação de que os “sete montes” (v. 9) são as sete colinas de Roma contraria a lógica de que a besta e a meretriz representam realidades distintas. A palavra gr. oros deve ser traduzida por “montes” ou “montanhas”. A NVI a traduz por “colinas”, mas, nesse caso, “uma exegese prévia influenciou a tradução” (JOHNSON, 1981, v. 12, p. 559). Os sete “montes” devem ser considerados como na mentalidade hebraica, ou seja, como rei- nos (ver Is 37:32; ver também Sl 48:2; Jr 51:25, Dn 2:35; 9:20, Zc 4:7). O mesmo ocorre com o termo “rei”, que os judeus usavam como equivalente de “reino” (ver Dn 7:17; 8:21, 23). Sobre a relação entre os “montes” e a igreja romana, Johnson ainda argumenta que esses símbolos “pertencem à besta [poder político] e não à meretriz [poder religioso]” (JO- HNSON, 1981, v. 12, p. 560; ver NICHOL, 1980, v. 7, p. 851).
anos!) pode ser entendida da perspectiva da garantia da vitória dos fiéis de Deus alcançada na cruz e não do ponto de vista do tempo cronológico. O adjetivo “pouco” (gr. olígon, v. 10) é usado em Apocalipse, ao se afirmar que o diabo, após a cruz, sabia que tinha “pouco tempo” (olígon kairon, 12:12). Por outro lado, ao falar que o dragão será solto após o milênio, mas por “pouco tempo”, João usa mikron krónon (20:3), indicando um tempo cronometrado (ver 1Pe 1:6, que também usa olígon no sentido de tempo não cronometrado).
12 Isso se ajusta à definição do anjo de que a besta “era e não é, está para emergir” (v. 8, 11), uma paródia em relação à pretensão do dragão de ser como Deus, “aquele que é, que era e que há de vir” (Ap 1:4, 8; 4:8), o único “Eu Sou” (Êx 3:14).
que atuou nessa fase da história). Essas três fases correspondem às duas últi- mas cabeças da besta e, possivelmente, ao “oitavo rei”.
O AT, portanto, provê a identificação das primeiras cabeças do dragão e da besta ao usar a palavra tannin e livyathan em referência ao Egito e Ba- bilônia. Também inclui a Assíria, ao afirmar que Deus se levantará contra os inimigos de Seu povo no dia do Senhor (Is 11:11). Como a explicação da visão de Ap 17 (v. 10) é feita no tempo do profeta, no primeiro século, cinco desses poderes já tinham passado (Egito, Assíria, Babilônia, Pérsia, Gré- cia), um existia (Roma) e o sétimo ainda viria (Roma papal) (ver PAULIEN, 2008, p. 218; NICHOL, 1980, v. 7, p. 855; STRAND, 1992, v. 2, p. 191).
A identificação das entidades representadas pelas cabeças do dragão e da besta tem, portanto, uma base sólida no AT, de onde são extraídas as principais figuras descritas nas visões de João.
O oitavo rei
Em Apocalipse 17:11, o anjo acrescenta uma informação, além da visão recebida pelo profeta, ao afirmar o aparecimento de um oitavo elemento: “E a besta […] também é ele, o oitavo rei, e procede dos sete” (v. 11).
O texto de Apocalipse 17:11 tem sido traduzido de diferentes formas em função da partícula gr. kai que precede o pronome autós (“ele”) e o adjetivo or- dinal ogdoós (“oitavo”). A NVI ignora a partícula e diz: “A besta que era, e agora não é, é o oitavo rei.” A KJV a traduz por “even”: “And the beast that was, and is not, even he is the eighth.” A NKJV, por “also”: “The beast that was, and is not, is himself also the eighth.” As versões portuguesas por “também”: “E a besta, que era e não é, também é ele, o oitavo rei” (ARA). A partícula kai, conjunção “e”, também é usada como advérbio, e nesse caso pode ser traduzida por “tam- bém” ou “igualmente” (ver Mt 5:39f; 5:46; 12:45f; Mc 8:7; At 13:9).
Assim, a tradução da NKJV e da ARA parece mais ajustada ao contexto, uma vez que a besta ou o dragão é o poder em ação em cada uma das cabeças ou dos “reis”. O sentido, então, seria de que ela é cada uma das sete cabeças/ reis e é também um oitavo. Isso estaria em conformidade com o background da figura do dragão de sete cabeças, que no AT é associado ao Egito e Ba- bilônia, dois dos impérios. Interpretar que a própria besta é o oitavo sugere que ela não é cada um dos sete reis anteriores. Isso implica separar a besta de suas próprias cabeças, o que seria estranho à unidade do símbolo.
A ausência do artigo definido antes do adjetivo ordinal masculino ogdoós (“oitavo”) não favorece necessariamente a ideia de que esse oitavo rei seja a própria besta (gr. therion, que é um substantivo neutro) (NICHOL, 1980, v. 7, p. 856). Essa ausência do artigo significa simplesmente que este é um ele- mento novo na visão. Cada vez que João descreve algo pela primeira vez, ele o faz sem o artigo definido (ver Ap 12:1, 3; 13:1, 11; 17:3). Sendo que o adjetivo ogdoós é masculino, ele pode ser relacionado aos “reis” (grego basileus, subs- tantivo plural masculino). Nesse caso, no contexto da descrição dos sete reis (v. 10, 11), seria mais natural ver o “oitavo” como mais um rei/império histórico do que como a própria besta.
O fato de o anjo dizer que cinco reis já haviam caído, um existia e o sétimo ainda viria (v. 10) sugere uma relação consecutiva e de semelhança entre os sete reis e o oitavo elemento. Além disso, ele acrescenta que o oitavo “procede” (grego ek, “procedência”, “origem”) dos sete. Nesse caso, um oitavo império, proveniente dos sete, é previsto. A besta não pode proceder dos sete impérios.
Se a besta é “também um oitavo”, conclui-se que ela é cada um dos impérios representados por suas sete cabeças.13 Nesse caso, ela representaria o poder imperial ou as “agências políticas” que, ao longo da história, se opõe a Deus.14 Sendo usado pelo inimigo de Deus, cada um dos impérios mun- diais, no momento em que se torna perseguidor do povo de Deus, pode ser visto como a materialização do governo de Satanás no mundo. Assim, “cada cabeça da besta é uma encarnação parcial do poder satânico que governa o mundo por um período” (THOMAS, 1995, p. 292). Os impérios podem ser usados por Deus, para apoiar o remanescente, como ocorreu com o Egito e a Pérsia. Mas, para todos eles, há um momento crucial em que passam a agir em prol da causa do dragão.
Os sete impérios afrontaram a Deus de alguma forma. O faraó do Egito questionou a Moisés: “Quem é o Senhor para que Lhe ouça a voz e deixe Israel ir?” (Êx 5:2). O rei assírio Senaqueribe cercou Jerusalém e desafiou o “Senhor”, afirmando que Yahweh não poderia livrar Judá de suas mãos (2Rs 18:13, 30-35). Nabucodonozor ameaçou os judeus, dizendo: “Quem é o deus que poderá livrar-vos das minhas mãos” (Dn 3:15). Na Pérsia, Hamã
13 Um símbolo unificado para representar diversos impérios, como se fossem um só, já é visto em Daniel 2, na estátua vista por Nabucodonozor cujos elementos (ouro, prata, bronze, ferro e barro) são destruídos pela pedra que cai do céu, sugerindo que os impérios passam, mas o poder por trás deles dura até a chegada do reino de Cristo, quando será destruído completamente.
14 “A besta em si mesma pode ser identificada com o trabalho de Satanás através das agências políticas, em todos os tempos, que se submetem ao seu controle” (NICHOL, 1980, v. 7, p. 851; ver STEFANOVIC, 2002, p. 515).
quis exterminar os judeus (Et 3:8). O selêucida Antíoco matou judeus e pro- fanou o templo. Roma crucificou a Cristo e destruiu Jerusalém. Acerca de Roma papal, se indagaria: “Quem é semelhante à besta?” (Ap 13:4). Por sua vez, a besta de dois chifres fará com que a terra e seus habitantes “adorem” a primeira besta (13:12) e condenará à morte os que não fizerem isso (13:15).
Visões paralelas
A relação do juízo da meretriz com a sexta praga lança luz adicional sobre Apocalipse 17, no sentido de possibilitar uma mais ampla exploração das entidades retratadas nos símbolos da meretriz e da besta escarlate. Nes- sa praga, o mundo aparece completamente polarizado entre os inimigos de Deus e o remanescente. Os inimigos integram a coalizão feita pelo dragão, a besta e o falso profeta (16:13) que incorpora também os “reis do mundo inteiro” (16:14). O remanescente é composto pelo grupo que “vigia e guarda” para andar retamente diante de Deus (16:15). No Armagedom, portanto, os inimigos que desafiam o “Deus Todo-Poderoso” (16:14) reúnem os poderes religiosos da Terra representados pelo dragão, a besta e falso profeta (cris- tãos professos e espiritualistas) e os poderes políticos e militares representados pelos “reis do mundo inteiro”.
Esses dois grupos são representados diversas vezes no Apocalipse, porém mais claramente no contexto do clímax do grande conflito descrito em Ap 13 e 16-17. No cap. 13, esse grupo opositor é representado por dois símbolos: a primeira besta, então curada de sua ferida mortal, e a besta de dois chifres (ver 13:11-17). No 17, o mesmo grupo é representado por dois outros símbolos: a meretriz e a besta escarlate juntamente com os “dez reis”. Do capítulo 13 para o 16-17, há uma progressão em que a entidade representada pela primeira bes- ta torna-se um poder apenas religioso e se expande para incorporar “espiritis- mo” e “protestantismo”, (WHITE, 2008, p. 160-165, 173) como sugerido em 16:13, formando a Babilônia (17:5). Por sua vez, a besta de dois chifres passa a incorporar também “os reis da terra” (16:14; 17:12, 16).
Essa ampliação na descrição das entidades justifica a mudança nos símbolos.15 De forma que a besta de sete cabeças (poder religioso) é mostra- espectro da revelação. Em Daniel 2, uma sequência de impérios (Babilônia, Pérsia, Grécia, Roma e Roma papal) é representada pela estátua de ouro, prata, bronze, ferro e barro. A mesma sequência é retratada em Daniel 7 por quatro animais: leão, urso, leopardo e o quarto animal. Já em Daniel 8, os três últimos poderes são representados por um carneiro, um bode e um “chifre pequeno”.15 A mudança de símbolos é comum na profecia apocalíptica, quando se deseja ampliar ou mudar o da em Apocalipse 17 na figura da meretriz, e a besta de dois chifres (poder político) é substituída por outro símbolo: a besta escarlate ou oitavo rei.
Assim, considerando o contexto comum do clímax do grande conflito e do Armagedom, em que os inimigos de Deus assumem essa composição política e religiosa, os cap. 13 e 16-17 de Apocalipse podem ser postos em paralelo, de modo que a primeira besta está para a meretriz, assim como a besta de dois chifres está para a besta escarlate ou oitavo rei, consideradas as mudanças na configuração das entidades em questão e as ampliações na descrição das mesmas. Ver quadro:
Os poderes opositores no clímax do conflito
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Os símbolos apocalípticos parecem ser usados de forma consistente ao re- presentar os poderes religiosos e os políticos e militares, no sentido de que os animais ou bestas representam poderes seculares, e animais com características humanas ou pessoas representam os poderes religiosos. Em Daniel 7, os animais que representam os poderes políticos babilônico, persa e grego não têm caracte- rísticas humanas. Já o chifre pequeno, do quarto animal, que representa o poder político-religioso papal tem “olhos, como os de homem” e “uma boca que fa- lava” (Dn 7:8). No Apocalipse, a besta símbolo do poder papal tem uma boca que profere “blasfêmias contra Deus” (Ap 13:6). Mas a segunda besta, símbolo do poder político americano, não tem características humanas. Em Ap 17, uma mulher representa o poder religioso, mas a besta escarlate não exibe nada de humano, o que a relaciona com os poderes políticos e militares.
O paralelo entre a descrição do clímax do grande conflito provida por Ap 13 e 16-17 permite avançar ainda mais na relação entre o oitavo rei e a besta de dois chifres. A besta escarlate “leva” (17:7; grego bastazw, “carre- gar”, “conduzir”) a meretriz na qual esta está “montada” (v. 3). A besta de dois chifres faz uma imagem à primeira besta e restaura sua ferida (Ap 13:14), ou seja, a segunda besta se coloca a serviço da primeira. A besta escarlate, que também é o oitavo rei (17:11), lidera os “dez reis” (nações modernas; conjunto multipolar de povos) em sua investida contra o Cordeiro, na peleja final (17:14). A besta de dois chifres lidera os que “habitam na terra” (13:14) e os “reis do mundo inteiro” (16:14) contra Deus e seu povo, no Armage- dom. Assim, nesses dois cenários, há a previsão de uma “grande coalizão” de poderes seculares, a serem liderados, segundo o cenário de Ap 13, pela besta de dois chifres e, segundo Ap 17, pela besta escarlate ou o oitavo rei.
Por outro lado, o clímax do conflito descrito em Apocalipse 13:11-17 não seria possível sem o papel desempenhado pela besta de dois chifres, pois é ela que restaura o poder da primeira besta, lhe faz uma imagem e impõe suas leis sobre a face da Terra. Se a crise final é desencadeada pelo surgimen- to da besta de dois chifres, em Apocalipse 13, ela precisa necessariamente ser visualizada no cenário da crise final descrito em Apocalipse 17.
O anjo declara ainda que a besta escarlate (poder político e militar), apoiada pelos dez reis, destruirá a meretriz (poder religioso). No desfecho do conflito, a proclamação final das três mensagens angélicas (Ap 14:6-10) por parte do remanescente provocará o desmascaramento da meretriz e contribuirá para sua consequente queda, cujo clímax se dará na sexta praga. As “águas” que se “secam” (v. 17:15) apontam para a retirada do apoio das nações (13:14; 16:14; 17:12, 13). Assim, as nações outrora unidas em favor da Babilônia não só deixarão de apoiá-la, mas a destruirão (17:16).16 Dentre as nações seduzidas pela meretriz, a mais forte é aquela representada pela besta de dois chifres, ou seja os Estados Unidos.
Deve-se notar também que o quadro de Apocalipse 17 de uma besta de sete cabeças mais um oitavo rei permite um paralelo ainda mais claro com Apocalipse 13, em que João também descreve oito reis/impérios, com o quadro de uma besta de sete cabeças mais uma besta de dois chifres, ou um oitavo poder. Considerando o papel essencial que essa besta desempenha na crise final, era de se esperar que ela fosse referida em Apocalipse 17 cujo foco é o clímax do conflito. Uma vez que os Estados Unidos não são representa- dos numa das sete cabeças da besta principal em Apocalipse 13, é também natural que no capítulo 17 esse poder seja representado como um oitavo, ou um adendo, na sequência dos sete anteriores e distinto deles.
Por outro lado, o que torna os Estados Unidos um poder perseguidor, na crise final, é o fato de nessa nação se reproduzir um fenômeno próprio
16 A ira de Deus sobre a meretriz será executada por meio de seus próprios aliados que tam- bém são inimigos de Deus. No AT, Deus usou a Babilônia antiga para executar Seu juízo sobre Judá (2Rs 24:1-20; Jr 20:4), e a Pérsia, para se vingar de Babilônia (Is 13:19; 34:14).
de uma das cabeças da besta, a sétima, que representa um poder terreno for- mado pela união da Igreja e do Estado. Assim, quando os Estados Unidos formalizarem uma união da Igreja (protestante) com o Estado (republicano), estará então reproduzida a “imagem da besta” (Ap 13:14) nessa nação pro- testante.17 De modo que o poder que essa nação exerce na crise final pode ser adequadamente descrito como uma duplicação ou reprodução da sétima cabeça. Então, o oitavo rei não seria um que destruirá o sétimo, mas um desdobramento deste. Essa relação entre o oitavo rei e o sétimo pode jus- tificar a expressão de que ele “é dos sete” (Ap 17:11, KJV, ARC) ou de que ele “procede dos sete” (ARA). João diz que a entidade representada pela se- gunda besta (EUA) “exerce todo o poder da primeira besta na sua presença e faz que a terra e os que nela habitam adorem a primeira besta” (Ap 13:12). Assim, uma relação de cooperação e desdobramento entre os dois supostos últimos reis já estava estabelecida em Ap 13.
Sendo que as cabeças da besta escarlate de Apocalipse 17 represen- tam sete reis/impérios mundiais (Egito, Assíria, Babilônia, Pérsia, Grécia, Roma e Roma papal), o oitavo rei pode ser, portanto, o poder americano, conforme representado pela besta de dois chifres em Ap 13:11. Nesse caso, o “oitavo rei” seria o último império a exercer poder sobre os fiéis de Deus.18
Essa relação entre o oitavo rei e a besta de dois chifres não descarta a relação entre o oitavo rei e o dragão/besta escarlate, mas procura especificar de que forma e por meio de quem o dragão deverá agir no clímax do confli- to. Essa interpretação é condizente com o que a própria Escritura provê em termos de identificação para os reis/impérios, ao relacionar o dragão com os mesmos. No êxodo, o Egito é o drákon que Deus esmagou nas águas do Mar Vermelho (LXX: Sl 74:13, 14; Is 51:9; Ez 29:3, 32:2). No cativeiro, Babilônia é o drákon que esmagava Israel (LXX: Jr 51:34). Roma pagã é representada pela figura do drákon (Ap 12:3, 9). Roma papal recebe poder e trono do drákon (Ap 13:2) e a Besta de dois chifres (EUA) fala como o drákon (Ap 13:11).
Além de o oitavo rei ser “procedente” dos sete, todos eles mantêm certas relações entre si, o que sugere que, ao longo da história, são um poder comum -se em pontos de doutrinas que lhes são comuns, influenciarem o Estado para que imponha seus decretos e lhes apoie as instituições, a América do Norte protestante terá então formado uma imagem da hierarquia romana” (WHITE, 1988, p. 445).17 Ellen G. White explica que a união da Igreja com o Estado levará os Estados Unidos à for- mação de uma imagem da besta. “Quando as principais igrejas dos Estados Unidos, ligando-
18 Sobre o desenvolvimento da interpretação adventista acerca da besta de dois chifres de Ap 13:11 (ver DORNELES, 2012, p. 33-52).
em oposição a Deus,19 no sentido de que Satanás é o agente que atua por trás de cada cabeça da besta. Os impérios representados pela besta compartilham símbolos, ideais, mitos, crenças e, sobretudo, uma visão comum de seu pre- tenso papel na manutenção da ordem do mundo (DORNELES, 2012, p. 89- 115; HALL, 2008). Por isso, são representados por uma mesma besta de sete cabeças. “A imagem de uma besta de sete cabeças representa uma besta que vive, morre e torna a viver sete ou oito vezes” (PAULIEN, 2008, p. 211).
A meretriz
A mulher pura nas Escrituras aponta para a igreja verdadeira tão claramente quanto a vulgar revela a religião corrompida. O símbolo da meretriz desperta menos debates do que o da besta escarlate, sendo relacionado à religião cristã apostatada. No entanto, se Apocalipse 17 e 18 apresenta um juízo de investiga- ção em que a identidade e a obra dos inimigos e Deus são reveladas a fim de se justificar a sentença a ser executada (Ap 18), e sendo que Apocalipse 18:24 diz que a meretriz é culpada do sangue “de profetas, de santos e de todos os que foram mortos sobre a terra”, ela já devia existir antes da era cristã.
Além disso, observando os tempos verbais na visão, o anjo diz a João que com ela se “prostituíram” os “reis da terra” e com seu vinho se “embebedaram” os que “habitam na terra” (v. 2). Os verbos conjugados no passa- do, no tempo de João, apontam para a relação mantida pela meretriz com os reis/impérios que tinham existido até então, do Egito até Roma.
João viu que a meretriz estava “montada” na besta escarlate (17:3), e o anjo disse que ela estava “sentada” sobre muitas águas (17:1, 15) as quais repre- sentam povos e nações (17:15). Ela também está “sentada” nos sete montes, que são os sete impérios. O verbo grego usado nesses versos é o mesmo: kathemai. Para Johnson, “Babilônia é encontrada onde quer que haja engano satânico” (JOHNSON, 1981, v. 12, p. 554). A meretriz, nesse caso, revela uma religião evidência dessa relação entre os impérios. O selo representa a integração de elementos cul- turais dos impérios egípcio, grego, persa, babilônico e romano no império americano. Seus principais itens são: 1) a pirâmide truncada egípcia muito usada pela maçonaria; 2) o olho da Providência, ou o olho de Hórus, deus solar filho de Osíris e Ísis, na mitologia egípcia; 3) a águia de cabeça branca, que era o pássaro de Zeus na mitologia grega e representava a descida do deus à Terra na crença egípcia; 4) os mottos “annuit coeptis”, “novus ordo seclorum” e “e pluribus unum”, tirados de Virgilio, poeta romano (ver OVASON, 2004). O desenho da águia, no selo, faz referência ao chamado “Faravahar”, uma efígie persa que simbolizava a luz celestial em torno dos reis, heróis e santos da Pérsia, e também à águia romana.19 O chamado Grande Selo dos Estados Unidos, estampado na cédula de um dólar é uma perversa que esteve difundida em todos os impérios, embora tenha sua mani- festação mais plena e final na Babilônia mística dos últimos dias, o que justifica o contexto escatológico em que é vista pelo profeta. Nesse sentido, a Babilônia mística pode ser considerada como representativa da “religião apóstata ao longo da história”, embora “Babilônia, a grande, designa em sentido especial as religi- ões apóstatas no tempo do fim” (NICHOL, 1980, v. 7, p. 851, 852).
O juízo divino traz à memória todos os profetas e santos mortos ao longo da história e os vinga sobre a meretriz, cujo incêndio faz prantear os próprios “reis da terra” (18:9, 10, 18). O anjo diz que a meretriz embebedou os que “habi- tam na terra” com seu vinho. No AT, o vinho é um bloqueador do discernimen- to espiritual. Deus ordenou aos sacerdotes que não usassem vinho a fim de que pudessem fazer “diferença entre o santo e o profano e entre o imundo e o limpo” e para que fossem capazes de “ensinar” aos filhos de Israel os “estatutos” do Se- nhor (Lv 10:9-11). Num tempo de apostasia, Isaías diz que sacerdotes e profetas, por causa do “vinho” e da “bebida forte”, se desencaminhavam e erravam “na visão e tropeçam no juízo” (Is 28:7). Se João está usando uma metáfora extraída do AT, o vinho de Babilônia deve representar as heresias com as quais ela embo- tou o juízo e desencaminhou os reis e os povos da Terra (ver Jr 51:7).
O culto ao sol e a crença na imortalidade da alma são encontrados em todos os impérios, desde o Egito. “O culto do sol era difundido e sua deificação foi uma fonte de idolatria em cada parte do mundo antigo” (OLCOTT, 1914, p. 142). Richard Rives afirma que egípcios, assírios, babilônios, medos e persas, gregos e romanos foram todos adoradores do sol (RIVES, 1999). A proibição feita por Moisés atesta da atração desse culto naquele tempo (Dt 4:19). No Egito, o extenso e dispendioso ritual de embalsamamento mostra a vitalidade da crença na imortalidade nesse primeiro império, a qual repor- ta ao Éden e se difundiu por toda a terra (BACCHIOCCHI, 2012, p. 60).
Assim, o vinho de Babilônia pode ser uma representação da santidade do dia do sol e da imortalidade da alma, a mentira primordial (WHITE, 1988, v. 2, p. 68, 118). Essas duas heresias funcionaram ao longo da história como uma poção mágica nas mãos da meretriz para seduzir os “reis” e os povos da Terra.
Considerações finais
As visões narradas em Apocalipse 17 e 18 podem ser vistas como reve- lações adicionais e explicativas sobre a sexta praga e tratam com a queda da Babilônia mística. Há uma sequência de juízo de investigação (AP 17) segui- do de execução da sentença (Ap 18). A meretriz e a besta escarlate parecem revelar entidades diferentes constituintes do grupo dos inimigos de Deus no clímax do grande conflito, contra os quais Deus executa juízos. Após a investigação retratada no capítulo 17, o Apocalipse mostra a execução da sentença divina primeiramente sobre a meretriz (18:20), depois sobre a besta (escarlate) e o falso profeta (19:20) e, por fim, sobre o dragão (20:10).
As semelhanças entre a besta escarlate, o dragão vermelho e a besta se- melhante a leopardo sugere que o diabo é o poder por trás de todos os impérios que, ao longo da história, se opuseram a Deus e a Seu povo. O paralelo entre o clímax escatológico descrito em Apocalipse 13 e 16-17 favorece a comparação entre a primeira besta e a meretriz, bem como entre a besta de dois chifres e o oitavo rei. Este oitavo rei pode ser visto como um poder político e militar es- catológico que, sucedendo os sete primeiros, seria o poder americano. A me- retriz é culpada do sangue de santos e profetas (18:24) de toda a história, e o juízo de investigação retoma seus pecados desde o primeiro império, o Egito.
Essa visão do poder imperial como um poder comum que, ao longo da história, se opôs a Deus, torna bastante apropriadas as palavras de Daniel a Nabucodonozor, acerca da pedra que caiu nos pés da estátua, sendo então “es- miuçado o ferro, o barro, o bronze, a prata e o ouro, os quais se fizeram como a palha”, e “o vento os levou, e deles não se viram mais vestígios”. Mas “a pedra que feriu a estátua se tornou em grande montanha [reino], que encheu toda a terra” (Dn 2:35, 45). O reino de Cristo, ao ser estabelecido, não herdará nada dos anteriores, mas destruirá para sempre todas as obras humanas que os diferentes impérios compartilharam ao longo da história.
Referências
BACCHIOCCHI, S. Crenças populares. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2012.
DAVIDSON, R. M. Sanctuary Tipology. In HOLBROOK, F. B. (Ed.). Symposium on Revelation: Introductory and Exegetical Studies. Silver Spring: Biblical Research Institute, 1992. v. 1.
DORNELES, V. O Último Império. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2012. HALL, M. The secret destiny of America. New York: Penguin, 2008.
HASEL, G. F. Juízo Divino. In: DEDEREN, R. Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2011.