A Escritura e os paradoxos

I. O que é um paradoxo?

Um jornal discutiu recentemente em um artigo o “paradoxo da abundância.” À  longo prazo a presença de petróleo, gás, diamantes (e coisas similares) conduzem os  países em desenvolvimento e que têm esses recursos à pobreza. Os economistas falam  disso sob o termo “doença holandesa.” (Dutch disease, em inglês – nota do tradutor) A  exportação de recursos naturais fortalece a moeda, mas enfraquece a indústria nacional e a agricultura, e conduzem à futura dependência de recursos naturais.

A afirmação “eu estou mentindo” é um paradoxo, pois caso seja verdade é um erro.  E se for errado, é verdade. Normalmente um paradoxo é algo aparentemente  contraditório, mas que ainda assim faz sentido e é “profundamente verdadeiro.”1 É uma  afirmação que é contrária à expectativas comuns e bastante difundidas. O paradoxo  comunica significado e sentido ao que é aparentemente sem sentido, e contém um  elemento de surpresa.

K. S. Kantzer sugere que um paradoxo, tal qual ele se encontra na Bíblia consiste  de: (1) uma afirmação que é auto-contraditória, ou (2) duas ou mais afirmações que são mutuamente contraditórias, ou (3) uma afirmação que contradiz alguma posição bem  estabelecida a respeito de um assunto específico.” 2 Ele também faz uma distinção entre paradoxos retóricos e paradoxos lógicos. Um paradoxo retórico é, por exemplo, uma  afirmação tal qual a que se segue: “Deixa aos mortos o sepultar os seus próprios  mortos” (Lucas 9:60b). Isso é uma figura de linguagem. Um paradoxo lógico “surge da  tentativa da mente humana em unificar e coordenar as múltiplas facetas da experiência.”3

II. Paradoxos na Escritura

Ambos os tipos de paradoxo são encontrados na Escritura. Jesus falou em forma de  paradoxos. De fato, seus discursos estavam cheios de paradoxos. “Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurados os que choram  porque serão consolados. Bem-aventurados os mansos porque herdarão a terra.” (Mateus 5:3-5); “Eu, porém, vos digo: não resistais ao perverso; mas, a qualquer que te  ferir na face direita, volta-lhe também a outra” (Mateus 5:39); “os últimos serão primeiros e os primeiros serão últimos” (Mateus 20:16); “Quem quiser, pois, salvar a  sua vida perdê-la-á; e quem perder a vida por causa de mim e do evangelho salvá-la-á.” (Marcos 8:35); “todo o que se exalta será humilhado; mas o que se humilha será  exaltado.” (Lucas 18:14b); “Mais bem-aventurado é dar que receber” (Atos 20:35b).

Paradoxos também são usados no Antigo Testamento: “A quem dá liberalmente,  ainda se lhe acrescenta mais e mais; ao que retém mais do que é justo, ser-lhe-á em pura perda.” (Provérbios 11:24). Paulo também tem sua própria lista de paradoxos: “Porque  o que foi chamado no Senhor, sendo escravo, é liberto do Senhor; semelhantemente, o  que foi chamado, sendo livre, é escravo de Cristo.” (1 Coríntios 7:22); “como  desconhecidos e, entretanto, bem conhecidos; como se estivéssemos morrendo e,  contudo, eis que vivemos; como castigados, porém não mortos; entristecidos, mas  sempre alegres; pobres, mas enriquecendo a muitos; nada tendo, mas possuindo tudo”  (2 Coríntios 6:9-10); “quando sou fraco, então, é que sou forte.” (2 Coríntios 12:10b);  “Mas o que, para mim, era lucro, isto considerei perda por causa de Cristo.” (Filipenses  3:7).

Todas essas afirmações não fazem sentido humanamente falando. O mandamento de  Jesus de que amemos nossos inimigos é chamado de “um pedido antinatural no mais alto grau e empiricamente contrário à natureza humana.”4 Enquanto a ética grega  “culmina na conformidade harmoniosa com a natureza humana,” a ética cristã “ensina  que a natureza humana deve ser transcendida.”5 Essa pode ser uma razão pela qual  algumas afirmações bíblicas podem parecer paradoxais em nossa opinião. Outra razão é  de que a realidade pode ser mais complexa do que nós somos naturalmente capazes de perceber e compreender.

Existem, entretanto, conceitos teológicos mais amplos expressos nas Escrituras que  soam paradoxais aos nossos ouvidos. Nós já fomos salvos, mas ainda não fomos completamente salvos. Nós ainda estamos esperando pela consumação final, mas já  possuímos a vida eterna aqui e agora. Conquanto as obras não contribuam para a nossa  salvação elas não são desimportantes. Ou “como é possível que os seres humanos sejam  simultaneamente pecaminosos e salvos?”6 Nossa salvação é uma realidade paradoxal.

Deus é retratado na Escritura como um, e ainda assim Pai, Filho e Espírito Santo são  chamados: Deus. Jesus é eterno, assim também é Yahweh. Ele é adorado, a Ele oramos.  Os cristãos têm expressado o conceito bíblico de um Deus e três pessoas dentro da Divindade. “Três que são um” é um conceito que não faz sentido matematicamente; é um paradoxo, e ainda assim é uma verdade. E o que dizer da natureza de Cristo que era completamente humano e completamente Divino enquanto vivia entre nós?

Devolver dízimo é algo que beira o paradoxo. Quando nós devolvemos parte de nosso dinheiro para a causa de Deus a quantidade menor de dinheiro que nos sobre rende mais do que se gastássemos tudo sem separar o dízimo.

O maior paradoxo é a cruz de Cristo. “Na teologia cristã, e no pensamento paulino particularmente, a crucifixão de Cristo é o paradoxo fundamental [que está em sua base ou fundamento. Nota do tradutor] (1 Coríntios 1;22-25).” Deus morre por nós para que sejamos salvos. Não é de se espantar que a cruz seja uma pedra de tropeço e uma bobagem para muitas pessoas. Não é de se espantar que a cruz esteja sendo “reinterpretada” em nossos dias e que uma religião sem sangue está sendo criada para tomar o lugar da noção da expiação substitutiva de Cristo em troca um amor sentimental que parte de Deus em direção à humanidade.

III. Como lidar com os paradoxos?

Uma vez que a Escritura está repleta de paradoxos, surge a pergunta: Como lidar com eles? Alguns desses paradoxos nos causam surpresa, mas são em grande medida auto-explicativos. Mas o que dizer a respeito daqueles que consistem em afirmações aparentemente contraditórias que não são encontrados em um verso ou passagem apenas? Muitas vezes esses paradoxos revelam conceitos teológicos que têm tremendas implicações, e moldam o relacionamento dos seres humanos para com Deus afetando o dia-a-dia da vida cristã.

Nesses casos nós devemos aprender a viver com afirmações que na perspectiva  humana possam parecer ilógicas, mas que não deixam de ser verdades. Escolher um grupo de afirmações e desconsiderar aquelas que pareçam contraditórias com esse grupo de passagens conduz à heresia. Optar pela unicidade de Deus e, dessa forma, excluir a noção da Divindade de Cristo (e do Espírito Santo – Nota do tradutor) é tão errado quanto fazer do Pai, do Filho e do Espírito Santo três deuses. Limitar a salvação ao presente ou ao futuro não faz justiça ao registro bíblico. Kantzer corretamente atesta: “Em tais casos o homem estará mais perto da verdade quando ele defende ambos os lados da uma questão paradoxal do que quando ele desiste de um lado da questão em 3 favor de outro.”7 Como cristãos devemos aprender viver entre tensões, por que a verdade pode muitas vezes ser expressa somente em termos paradoxais.

Referencias

1 – Richard N. Soulen, Handbook of Biblical Criticism, second edition (Atlanta: John Knox Press, 1981),  140
2 – K. S. Kantzer, “Paradox,” in Evangelical Dictionary of Theology, edited by Walter A. Elwell (Grand  Rapids: Baker Book House, 1984), 826
3 – Ibid.
4 – Wolfgang Schrage, The Ethics of the New Testament (Philadelphia: Fortress Press, 1990), 77
5 –  Ibid.
6 – R. V. Schnucker, “Neo-orthodoxy,” ” in Evangelical Dictionary of Theology, edited by Walter A. Elwell  (Grand Rapids: Baker Book House, 1984), 755
7 – Kantzer, 826