Deus pode ser entendido somente quando é partilhado de um coração a outro pelas cordas invisíveis da amizade
Amizade não é apenas uma ferramenta para o crescimento da igreja. Ela é a mais profunda essência de tudo o que somos como igreja. Se desejamos realmente expandir o reino de Deus aqui na Terra, se quisermos que a igreja seja viva, experimente Deus e cresça de modo sadio e consistente, com membros que progridem rumo à maturidade em Jesus Cristo (Ef 4:10-18), precisamos vivenciar o poder da amizade calorosa e comprometida no trabalho pela salvação das pessoas.
Como nos será possível levar uma pessoa a se relacionar com Deus, se não utilizarmos o recurso da amizade? Como alguém poderá entender a lógica da ligação coração a coração com Deus, se não houver exemplo prático? Como poderá ser entendida a natureza da religião, se Cristo não for visto, “cheio de graça e de verdade” (Jo 1:14), em nossos relacionamentos?
Jesus e a amizade
No conhecido Sermão da Montanha, Jesus deixou bem claro o foco de Seu ministério, enfatizando virtudes que fortalecem os relacionamentos (Mt 5:1-7:29). Ao longo dos evangelhos, Ele constantemente destacou a natureza da verdadeira religião: amor a Deus, a si mesmo e ao próximo, reconciliação, perdão, humildade, mansidão, fé, entre outras virtudes. Nesse sentido, Seu ensinamento foi claro: “Nisto conhecerão todos que sois Meus discípulos: se tiverdes amor uns aos outros” (Jo 13:35). “A fim de que todos sejam um; e como és Tu, ó Pai, em Mim e Eu em Ti, também sejam eles em nós; para que o mundo creia que Tu Me enviaste” (Jo 17:21). Cristo sabia que o mundo seria atraído para Ele, pela unidade verificada entre Seus discípulos, bem como pelo amor mutuamente partilhado.
Somos ainda informados de que, em Seu ministério, Jesus “misturava-Se com os homens como uma pessoa que lhes desejava o bem. Manifestava simpatia por eles, ministrava-lhes às necessidades e granjeava-lhes a confiança. Ordenava então: ‘Segue-Me.’” (Ellen G. White, A Ciência do Bom Viver, p. 143). Em outras palavras, Ele construía amizade com as pessoas com intenção de salvá-las. Fazia isso porque entendia que Deus somente pode ser entendido quando é partilhado de um coração a outro, pelas cordas invisíveis da amizade.
A igreja e as pessoas
Numa época em que a igreja era o ponto central da sociedade, as pessoas se encontravam e construíam amizade a partir dos acontecimentos que nela ocorriam. Com o pós-guerra, a desestruturação dos valores pessoais, familiares e comunitários pela liberação sexual, a igreja foi perdendo seu espaço como centro dos acontecimentos sociais nas cidades. Mas, embora fosse descartada pelas pessoas, ela continuou se entendendo como autoridade e referência moral na comunidade.
Diante disso, cabe perguntar: Qual é a função da igreja, hoje, considerando-se que ela não mais é aceita pela função que teve no passado? Como a igreja pode continuar crescendo, quando as pessoas estão cada vez menos ligadas com aquilo que ela significa? Como é possível atrair pessoas para Deus e Sua igreja, quando elas são cada vez mais impelidas para longe dEle, por meio das caricaturas e percepções distorcidas do que é a igreja? Como podemos ser relevantes para pessoas que vivem dos estereótipos de igreja criados pela sociedade?
Pensemos no que as pessoas estão procurando com maior intensidade hoje, numa sociedade em que a família se desintegra, com pais separados, filhos deixados num vazio relacional que marca a existência deles até a vida adulta.
Segundo o IBGE (dados de 2007), 250 mil casais se separam a cada ano, 250 mil famílias são desfeitas no mesmo período, deixando aproximadamente 300 a 500 mil crianças sem um dos pais. Um em cada quatro casamentos é desfeito, antes de completar dois anos. Em 93% das separações, os filhos ficam com a mãe, ocasionando o vazio da figura paterna que, segundo especialistas, é o vazio de significado e de propósito da vida e da estrutura emocional. A depressão, mal do nosso milênio, é resultado óbvio do vazio relacional deixado pela família; pois, o significado e propósito da vida estão intimamente ligados à relevância dos relacionamentos.
A amizade oferecida por aqueles que creem em Deus pode não preencher todo o vazio existente, mas é um bálsamo altamente procurado para curar feridas. Além da mensagem adventista com seus componentes de conforto e esperança, o maior fator de atração que temos para as pessoas é a amizade restauradora, comprometida, curadora.
Resposta à rebeldia
No grande conflito entre o bem e o mal, o inimigo tem induzido à rebeldia praticamente todos os setores da sociedade. Essa rebeldia contra Deus tem se organizado e alicerçado nos âmbitos científico, social, político e legal. A confusão de valores com a qual as pessoas precisam lidar diariamente alcançou níveis nunca imaginados. Para muitas pessoas, é difícil achar um caminho para encontrar o Deus verdadeiro, em meio a tanta confusão.
Nesse ponto, surgem perguntas: Como acreditar? Em quem acreditar? Como posso saber por onde devo andar? Que elementos tenho para crer que o caminho indicado é aquele que me conduz à salvação? Que subsídios tenho para me ajudar a decidir sobre questões tão importantes como a vida eterna? Diante do progresso da rebeldia e da minimização de figuras religiosas e autoridades eclesiásticas, em que posso me basear e colocar minha confiança?
Para tais indagações, não existe melhor resposta do que a amizade. As pessoas confiam em quem elas conhecem. Reconhecem como autoridade pessoas que estão acima de qualquer suspeita na percepção afetiva delas. Pessoas que demonstram ser dignas de confiança podem construir a ponte entre os sem-igreja e o Deus verdadeiro.
Falam as pesquisas
Pesquisa realizada pelo Núcleo de Missões e Crescimento de Igreja do Unasp, Numci, em 2009, na cidade de Campinas, São Paulo, revelou que mais de 85% das pessoas aceitam falar sobre Deus e receber instrução bíblica, se tiverem um relacionamento de confiança com o eventual instrutor.[1]
Mas, existem outras pesquisas bastante reveladoras sobre o poder da amizade, tanto para conquistar pessoas para Cristo, como para mantê-las firmes na fé. Uma dessas, realizada por Gottfried Osterval,[2] mostra que de quatro mil pessoas pesquisadas, 57% se uniram à igreja e nela permaneceram por haver sido convidadas por amigos ou parentes, isto é, havia um relacionamento prévio de confiança. Para 67%, o primeiro contato com a igreja se deu por meio de parentes e amigos. Em seu livro Pontes de Deus, publicado em 1956, Donald McGavran descreveu os caminhos pelos quais as pessoas se tornam cristãs. O primeiro caminho descrito por ele é a amizade.
Como poderíamos esperar que fosse diferente? A amizade é o caminho de acesso aos recônditos mais sagrados do coração. Esse espaço não pode ser franqueado a quem não confiamos. O coração é território delicado em que simbolicamente se encontram todas as sensibilidades espirituais e emocionais, todos os nossos medos e inseguranças; é o lugar em que há confluência das nossas mais profundas alegrias e esperanças. De fato, ninguém abre o espaço do coração para correr o risco de que alguém tripudie sobre as mais profundas sensibilidades do ser.
Sendo a amizade a essência de tudo o que cremos e queremos ensinar para levar pessoas a Cristo, precisamos entender como podemos ser amigos mais eficientes. Nesse sentido, em uma pesquisa coordenada por Flavel Yeakley,[3] foram feitas algumas descobertas:
As pessoas que ficaram ativamente na igreja foram conquistadas por meio da interação e amizade. Foram abordadas por missionários que realmente se interessaram e se importaram com elas. Consequentemente, esses missionários ganharam o direito de ser autoridades na vida dos novos conversos, ao levarem a sério os medos e preconceitos que eles tinham. Em nenhum momento foram desprezados por causa das convicções que tinham nem foram manipulados para aceitar a fé.
Aqui estão alguns depoimentos de pessoas atraídas a Cristo e à igreja por meio da amizade cristã:
“Entendi melhor a Bíblia, quando percebi que não era somente teoria. Diversas vezes, percebi que o instrutor estava interessado na minha vida.”
“João e Catarina me convidaram para almoçar na casa deles. Foi ali que tudo começou.”
“Quando fui à igreja, senti que os membros se preocupavam de fato com minha família. Eles nos visitavam e oravam conosco.”
“Quando Fernando, meu professor de Bíblia, me ajudou a encontrar meu atual emprego, eu estava numa fase em que não acreditava que alguém pudesse se importar comigo.”
“Senti que Sara e Keylin tiveram real interesse por mim.”
“Minha mente e meu coração se abriram para o que eles tinham a dizer, à medida que eu sentia que o interesse deles por mim era genuíno.”
“Eu estava estudando a Bíblia porque achei que era bom saber a vontade de Deus. Mas, eu a entendia como se fosse em preto e branco. Depois que Jéssica conseguiu uma vaga na escola adventista para mim, a verdade começou a ficar colorida e muito mais atrativa.”
Win Arn[4] descobriu que, se os recém-convertidos encontrarem pelo menos sete bons amigos no primeiro ano depois de batizados e aceitos na igreja, eles provavelmente estarão envolvidos e ativos na congregação. Em contrapartida, a maioria dos que se afastam, no primeiro ano após o batismo, não tem nenhum amigo.
Christian Schwarz[5] afirma que uma das marcas de qualidade que mais evidenciam a saúde de uma igreja é o relacionamento marcado pelo amor. Em outras palavras, uma igreja com essa característica cresce muito mais vigorosa e consistentemente. As pessoas vêm e permanecem com convicção e habilidade para partilhar esse amor com outras pessoas. Sjogren, Ping & Pollock afirmam que “de cada cinco amizades conduzidas com o propósito de levar pessoas a Cristo, com 80% de probabilidade, pelo menos uma vai resultar em batismo no primeiro ano e outra no segundo ano”.[6]
Fica evidente que a amizade contribui diretamente para o crescimento da igreja.
O fator emoção
Conforme o avanço da pós-modernidade, precisamos entender que as pessoas valorizam mais aquilo que sentem do que o que é racional. “Isso me parece certo”, dizem elas, fundamentadas numa intuição emocional. Falar a essa emoção, sem se esquecer de guiar a pessoa à compreensão racional a respeito de quem é Deus e do que é a igreja, é algo que precisamos aprender. Na mente das pessoas, o fator emocional acaba sendo o selo de garantia para avaliar a genuinidade do que estamos falando.
Em nossa época, as pessoas geralmente não estão preocupadas se o que estamos ensinando é a verdade. A preocupação delas é se o ensino é sentido como genuíno, certo, real e verdadeiro. Entender as pessoas no âmbito emocional em que elas se encontram e dar respostas que traduzam a leitura feita é a melhor forma de nos ligarmos a elas e levá-las a Deus. Entendê-las nesse nível significa se importar com elas, considerando relevante tudo o que se passe na vida delas.
Finalmente, não devemos esquecer que o cristão que oferece amizade redentora também é desafiado a crescer e ser beneficiado com o que está oferecendo. Existem amizades que são estabelecidas aqui na Terra e perdurarão por toda a eternidade.
“Os que se encerram em si mesmos, que são avessos a se desdobrarem para beneficiar os outros mediante amigável convívio, perdem muitas bênçãos; pois mediante o contato mútuo as mentes são polidas e refinadas; por meio do intercâmbio social formam-se relacionamentos e amizades que dão em resultado certa unidade de coração e uma atmosfera de amor que agradam ao Céu” (Ellen G. White, Mensagens aos Jovens, p. 405).
Referências:
- Berndt Wolter, Perfil do Sem-Igreja na Cidade de Campinas (Numci/Unasp-EC, 2009), material ainda não publicado.
- Gottfried Osterval, Patterns of Seventh-day Adventist Church Growth in North América (Berrien springs, MI: Andrews University Press, 1976).
- Citado por Mark Finley, em Amigos Para Sempre (Numci, 2010).
- Gottfried Osterval, Op. Cit.,
- Christian Shwarz, Desenvolvimento Natural da Igreja (Curitiba, PR: Editora Evangélica Esperança, 1996), p. 44.
- S. Sjogren, D. Ping & D. Pollock, Irresistible Evangelism (Loveland, CO: Group Publishing Inc. 2004), p. 107.