Acima de estratégias, programas e investimentos, está o desenvolvimento dos dons espirituais na igreja
Pode a igreja sobreviver em nossa época? O pós-modernismo desqualifica as instituições e o tradicionalismo, preferindo grupos independentes e uma mentalidade fundamentada em tolerância, dúvida constante e experimentalismo. Em vista disso, cabe a pergunta: Qual é o benefício de se frequentar igrejas? Acaso, não é possível cultivar a espiritualidade em casa, sem regras preestabelecidas e convenções antiquadas?
Essas considerações não devem ser ignoradas pelos cristãos do século 21, mesmo que haja a tentação de nos fecharmos em uma subcultura religiosa. Se assim procedêssemos, perderíamos a influência sobre a sociedade. Por outro lado, trata-se de uma questão de sobrevivência: o impacto dessa mentalidade sobre a cosmovisão cristã tem diminuído a importância da frequência à igreja. Isso é sintomático da própria desimportância com a qual a igreja é considerada, que deixa de ser aquilo que a Bíblia afirma sobre ela, ou seja, um ambiente de amadurecimento espiritual constante.
Como resgatar a visão de Deus sobre a igreja em meio aos questionamentos pós-modernos? Somente pela reafirmação dos princípios revelados, ela achará apoio para responder com propriedade aos ataques do pensamento em voga.
Neste artigo, a partir do estudo de Efésios 4:7-16, verificaremos o papel de cada cristão; a função da igreja; o tipo de experiência que pode ser usufruída na comunidade de fé e, finalmente, a postura para que a igreja continue crescendo conforme o plano de Deus. Cada um desses tópicos receberá resposta dentro da carta aos efésios. Antes, analisaremos duas importantes verdades que englobam os ensinamentos do texto em consideração.
Resultado da vitória de Cristo
Paulo nos fala da graça mensurável pelos dons repartidos entre todos os cristãos (Ef 4:7). Apesar de o apóstolo discorrer em diversas ocasiões sobre a “graça salvadora”, aqui ele fala sobre a “graça para o serviço”.[1] Assim sendo, a igreja é uma “comunidade carismática”,[2] no sentido de que recebe capacitação através dos dons espirituais. Afinal, “cada cristão recebe uma função ministerial, para a qual os líderes da igreja precisam equipá-lo”.[3]
O escritor inspirado também identifica a distribuição de dons como resultado da vitória do Senhor Jesus Cristo, alcançada na cruz. Para isso, ele cita as palavras do Salmo 68:18, que se apresentam levemente modificadas. Para alguns estudiosos, as tentativas de conciliar as palavras do salmo exatamente com o uso que Paulo fez delas gerou apenas resultados malsucedidos.[4] Para tais eruditos, Paulo teria apenas feito uma aplicação e não citado literalmente as palavras de Davi.[5]
Entretanto, para Calvino, “dizer que Deus manifestado na carne recebeu dons dos cativos é a mesma coisa que dizer que Ele os distribuiu com Sua igreja”.[6] Ademais, o referido salmo estabelece (v. 19, 20), que o povo de Deus “compartilha os benefícios da conquista”.[7] John Stott afirma que os conquistadores recebiam presentes dos conquistados, os quais se tornavam dádivas a ser repartidas com o povo vitorioso. Como evidência adicional, Stott menciona que as próprias versões bíblicas Siríaca e Aramaica atestam que o salmo pode ser interpretado dessa maneira, considerando que empregam a forma verbal “concedeu”.[8]
Em seguida, Paulo considera as consequências da afirmação do verso 8: “Repare aqui: dizer que Cristo ‘subiu’ significa que antes Ele deve ter ‘descido’, isto é, até a profundeza deste mundo. Aquele que desceu é o mesmo que agora subiu para bem alto, acima do céu – a fim de que pudesse preencher todo o Universo (Ef 4:9, 10).”[9] Em Sua humilhação, Jesus alcançou a vitória que agora, em Sua exaltação, reparte com Seu povo. Após essa reflexão teológica, Paulo trata da diversidade e funcionalidade dos dons espirituais.
Crescimento dos cristãos
Como disse um intérprete, se o círculo dos que recebem a revelação de Jesus se restringe aos santos apóstolos e profetas (v. 11),[10] muitos mais são os que podem participar do ministério. Afinal, Deus designou pelo menos um dom para cada cristão.
Não se trata apenas de ocupar um cargo na igreja, porque uma indicação que não considere os dons não terá valor.[11] Tendo sido identificados com Cristo, somos parte de Seu corpo, o que conspira contra a ideia de uma “piedade individualista, típica de muita prática mística tradicional e da Idade Média tardia”. Pertencemos a Cristo, mas pertencemos a Ele “juntamente com os outros, com a implicação óbvia de que uma coisa sem a outra” tornaria o todo algo desequilibrado e doentio.[12]
A lista de dons mencionados (v. 11) não é extensa nem pretende ser definitiva. Apesar disso, Paulo ressalta o propósito dos dons sobrenaturais, dizendo que foram outorgados “com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo” (Ef 4:12).
A palavra grega aqui traduzida como “aperfeiçoamento” sugere o conserto de algo para melhor uso (conforme Mt 4:21, onde se diz que João e Tiago consertavam as redes).[13] A New American Standard Bible traduz o vocábulo empregado na carta aos efésios como “preparo”. Já o termo “edificação” aparece na Septuaginta em alguns textos de Jeremias (1:10; 24:6; 31:4; 33;7), que tratam da edificação de Israel. Provavelmente, o sentido metafórico de Jeremias tenha influenciado Paulo.[14] “Isto traz a lume com maior clareza que o propósito imediato dos dons de Cristo é o ministério realizado por todo o rebanho; seu propósito último é a edificação do corpo de Cristo, ou seja, a igreja.”[15]
Em qual momento essa dinâmica ocorre na congregação? Em primeiro lugar, amadurecemos espiritualmente, nos tornando semelhantes a Cristo (v. 13). A igreja funciona como estufa: trata-se do ambiente controlado para propiciar crescimento espiritual harmônico e coletivo. Sendo que ninguém possui todos os dons, precisamos uns dos outros para crescer em Cristo, seguindo “a verdade em amor” (v. 15, 16). “A igreja não é um corpo que inventa ideias”, declarou Francis Schaeffer, “a igreja é uma declaração daquilo que Deus revelou a respeito de Si próprio na Escritura.”[16]
Sendo participantes do processo de maturação, resistiremos solidamente aos enganos. “Então, não seremos mais crianças, que são barquinhos agitados pelas ondas e levados de um lado para outro por todo tipo de ensinamento que apareça” (Ef 4:14).[17]
Lições do texto
Tendo estudado a mensagem de Paulo aos efésios, voltemos aos tópicos iniciais:
A função de cada cristão. Somos chamados para exercer nossos dons e colaborar com a comunidade cristã local (v. 11-13)
A função da igreja. A igreja deixa de ser entendida como instituição ou organismo, passando a ser considerada um corpo vivo, o corpo simbólico do Senhor Jesus, no qual cada parte deve agir de forma articulada (v. 16).
O tipo de experiência que se pode usufruir na comunidade de fé. Somente na igreja é usufruída verdadeira comunhão de espiritualidade sadia, inspirada em Cristo e exercitada no convívio com outras pessoas resgatadas por Ele (v. 14, 15).
A fórmula para o contínuo crescimento da igreja. Acima de estratégias, programas e investimentos (todos eles muito importantes), deve estar o treinamento e desenvolvimento dos dons espirituais (v. 12). Uma igreja que cresce espiritualmente também crescerá numericamente. Se apenas focalizarmos o crescimento numérico, não teremos assegurado o crescimento espiritual.
Referências:
1 John Stott, A Mensagem de Efésios (São Paulo, SP: Aliança Bíblica Universitária, 1986), p. 111.
2 Ibid.
3 Robert Gundry, Panorama do Novo Testamento (São Paulo, SP: Edições Vida Nova, 2007), p. 348.
4 Francis Foulkes, Efésios: Introdução e Comentários (São Paulo, SP: Edições Vida Nova, 2006), p. 96.
5 William Hendriksen, Comentário do Novo Testamento: Efésios (São Paulo, SP: Casa Editora Presbiteriana, 1992), p. 237, 236.
6 João Calvino, O Livro dos Salmos (São Paulo, SP: Edições Paracletos, 1999), p. 661.
7 Derek Kidner, Salmos 1-71: Introdução e Comentários (São Paulo, SP: Edições Vida Nova, 2006), p. 264.
8 John Stott, Op. Cit., p. 112.
9 J. B. Phillips, Cartas Para Hoje (São Paulo, SP: Edições Vida Nova, 1994), p. 114.
10 Gerhard Dautzenberg, Forma e Exigência do Novo Testamento (São Paulo, SP: Editora Teológica, 2004), p. 149.
11 Francis Foulkes, Op. Cit., p. 97.
12 D. G. Dunn, A Teologia do Apóstolo Paulo (São Paulo, SP: Paulus, 2008), p. 464, 465.
13 Francis Foulkes, Ibid.
14 W. E. Vine, Merril F. Unge e William White Jr., Dicionário Vine (Rio de Janeiro, RJ: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2002), p. 582.
15 William Hendriksen, Op. Cit., p. 246.
16 Francis Shaeffer, Espiritualidade Cristã (São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2008), p. 224, 225.
17 Novo Testamento, Versão Fácil de Ler (São Paulo, SP: Editora Vida Cristã, 1999), p. 299.