Cobertos pelo sangue

Nosso caminho pode ser longo e difícil, mas podemos evitar a destruição, da mesma forma que os israelitas a evitaram

Acaso, você já se perguntou por que Deus pediu que os filhos de Israel marcassem com sangue a verga e as duas ombreiras da porta da casa deles, antes da décima praga (Êx 21:7)? Seguramente, sua resposta é que essa prática serviria de sinal para que o anjo da morte passasse por alto aquelas casas, protegendo-as, assim, da destruição (Êx 12:13).

Isso é verdade. Mas, por que as ombreiras? Tendo em mente que ninguém é mantido fora de uma casa por causa das ombreiras, por que não manchar de sangue alguma outra coisa que chamasse a atenção, como uma grande cruz, ou a própria porta?

A arqueologia egípcia responde a essas perguntas. E uma das grandes lições que podemos aprender de sua resposta diz respeito à salvação somente pela fé.

Nação corrompida

Os israelitas já foram descritos como um povo que “se manteria como uma raça distinta, nada tendo em comum com os costumes nem[1] com a religião dos egípcios” , e assim preservariam o conhecimento do Senhor. Essa divinamente planejada distinção mudou depois da morte de José e, por ocasião de sua experiência junto à sarça ardente, Moisés estava descontente com a “cegueira, ignorância e descrença dos filhos de Israel, muitos dos quais estavam quase destituídos do conhecimento de Deus”.[2]

De acordo com o relato bíblico, no tempo do fim do Êxodo, os israelitas já não eram nômades, pois haviam passado a morar em casas (Êx 12:22), um costume egípcio que eles tinham adotado. Em resumo, eles estavam se tornando muito parecidos com os egípcios. Esse ponto é muito importante para a compreensão do que apresentaremos a partir daqui.

Imortalidade

Os egípcios acreditavam na vida eterna após a morte e estruturavam toda a sua vida e suas práticas (que os israelitas também adotaram) de modo que refletissem essa crença. Eles construíam suas residências – desde as mais humildes casas dos escravos até os palácios luxuosos – com o mesmo material de construção, ou seja, tijolos de barro. Considerando que essa vida presente era temporária, usavam material temporário de construção para suas casas. Em contraste a isso, utilizavam rochas na construção de seus templos e sepulturas, como símbolo da vida eterna após a morte. Toda construção que supostamente fosse usada pela vida eterna (como templos e sepulcros) tinha que ser feita com material que, segundo se imaginava, fosse durar para sempre.

As únicas exceções a essa regra arquitetônica eram as ombreiras e vergas das casas construídas com tijolo de barro. Nesse tipo de casa, as ombreiras e vergas eram feitas de pedra. Essa construção refletia sua  crença a respeito da constituição do ser humano. Os egípcios acreditavam que o ser humano era constituído de cinco partes.[3] Se qualquer uma dessas partes deixasse de existir, a pessoa também deixaria de existir para sempre.

O corpo humano era um componente dessa crença, razão pela qual a mumificação era importante. Se o indivíduo iria viver eternamente, é óbvio que seu corpo também tinha que sobreviver. A sombra era outro componente. Os egípcios acreditavam que a sombra demonstrava realidade e era uma parte real do indivíduo. Outra parte dessa crença era a ka ou “força da vida”. Os cristãos chamam a força que produz vida de “fôlego da vida” (Gn 2:7). A quarta parte da pessoa era o ba ou “traços de caráter”. A última parte da humanidade, segundo o pensamento egípcio, era o nome.

O que há em um nome

Para a mentalidade egípcia antiga, o nome era uma parte muito real da pessoa. Por essa razão, todo moderno visitante que chegar ao Egito encontrará exemplos de nomes cinzelados fora dos santuários remanescentes. Hatshepsut, por exemplo, viveu justamente antes do Êxodo e governou o Egito durante cerca de vinte anos, depois que a morte encurtou o reinado de seu marido. Entretanto, algum tempo depois que ela morreu, o nome de Hatshepsut foi raspado de muitos monumentos, num evidente esforço de também apagá-la da vida eterna.

Essa análise está presente nos escritos de Moisés, que foi educado segundo o estilo egípcio de vida. Na descrição que faz do Êxodo, ele nunca menciona o nome do faraó, mas deliberadamente dá o nome das duas parteiras hebreias que foram leais a Deus (Êx 1:15). Sendo fiéis a Deus, elas tinham direito à vida após a morte. Por esse motivo, seus nomes eram importantes e dignos de menção. Esse não era o caso do faraó, que tinha rejeitado a Deus (Êx 5:2). Consequentemente, seu nome não era importante e poderia ser esquecido na História.

Para combater o potencial anonimato de seus nomes, a realeza e a nobreza construíam grandes monumentos de rocha, gravando no máximo de lugares esses nomes. Entretanto, os menos ricos e abastados não podiam se dar ao luxo de fazer isso. Na verdade, embora fossem construídas principalmente com tijolos de barro, suas casas também possuíam ombreiras de pedra e verga. Sobre essas partes eram inscritos os nomes de quem vivia na casa. Ainda que ela fosse destruída, a chance de os nomes serem preservados nas pedras era muito grande.

E eles estavam certos, pelo menos quanto à sobrevivência dos nomes ao tempo. Quanto mais ombreiras e vergas são encontradas em escavações, os nomes de seus antigos proprietários permanecem intactos. Egiptólogos têm escavado a região Delta do rio Nilo (área pantanosa do nordeste do Egito, onde os israelitas habitaram). Nessas escavações eles têm descoberto muitas daquelas antigas ombreiras e vergas, datadas da época do Êxodo.[4] A região do Delta é muito úmida, de modo que poucas pedras têm restado.

Nomes e sangue

Quando os hebreus imigraram para o Egito, eles moravam em tendas. Entretanto, com o passar do tempo, aprenderam a construir casas (provavelmente como parte do trabalho que realizavam como escravos) e usaram esse conhecimento para construir suas próprias casas, com estruturas mais permanentes, talvez não muito diferentes de como os egípcios construíam suas moradas. Ao retornar para o Egito, Moisés encontrou seu povo morando em casas em vez de tendas. Eles tinham muito a desaprender, e as pragas deviam ser parte desse processo.

Os filhos de Israel tinham que aprender a superioridade de Deus em relação aos deuses do Egito, aos quais eles tinham sido expostos durante quatro gerações. Pacientemente, o Senhor lhes ensinou a confiar nEle, mas depois de nove pragas, havia mais uma lição objetiva para ser ensinada.

Quando Deus requereu que os israelitas pintassem vergas e ombreiras das portas, cobrindo seus nomes com o sangue tirado do cordeiro, Ele estava lhes ensinando os rudimentos da salvação. Ter simplesmente o nome das pedras não significava segurança de vida futura; somente o sangue do Cordeiro oferecia tal certeza. De fato, pelo menos um membro da família não sobreviveria àquela noite sem isso.

Nós temos que aprender a mesma lição. Importa, sim, onde nosso nome está escrito. “E, se alguém não foi achado inscrito no livro da vida, esse foi lançado para dentro do lago de fogo” (Ap 20:15). Esse “livro da vida” também é chamado “livro da vida do Cordeiro” (Ap 21:27). Não é difícil ter nosso nome escrito nesse livro; simplesmente necessitamos aceitar o sangue do Cordeiro que tomou nosso lugar.

Na realidade, há muito mais que isso em nosso caminhar com Deus, mas tudo começa nesse ponto. Os israelitas iniciaram o Êxodo do Egito, colocando o sangue do cordeiro pascal sobre seus nomes. Então, começaram a jornada de seguir a Deus. Assim acontece conosco. Nosso caminho pode ser longo e difícil, mas podemos evitar a destruição, da mesma forma que os israelitas a evitaram: iniciando nossa jornada com nosso nome coberto pelo sangue do Cordeiro.

Referências:
1 Ellen G. White, The Story of Patriarchs and Prophets: As Ilustrated in the Lives of Holy Men of Old (Mountain View, CA: Pacific Press Publishing Association, 1958), p. 242.
2 Ibid., p. 252.
3 James P. Allen, Middle Egyptian: An Introduction to the Language and Culture Of Hieroglyhps (Cambridge: Cambridge University Press, 2001), p. 79-81.
4 Labib Habachi, Tell El-Dab’a I: Tell El-Da’a and Qantir the Site and its Connection With Avaris and Piramesse (Vienna: Verlag der österreichischen Akademir der Wissenschaften, 2001), p. 40-43, 53-55.