O Discipulado no Antigo Testamento

O Discipulado no Antigo Testamento

O DISCIPULADO NO ANTIGO TESTAMENTO

Reinaldo W. Siqueira, Ph.D.

 

  1. Existe a Noção de Discipulado no AT?

 

Ao se abordar o tema do discipulado no Antigo Testamento, o primeiro desafio que se encontra é o questionamento se essa noção realmente existiu nos tempos veterotestamentários e se ela ocorre no texto dessa seção da Bíblia. A relativa “ausência” de termos hebraicos (especialmente a do termo talmîd) correspondentes ao grego mathetés (“discípulo”), no AT, indica, para muitos, a inexistência desse conceito no mundo do antigo Israel bíblico, como o expressou Karl H. Rengstorf (1995, p. 427):

 

“Se o termo está ausente, assim também está o conceito que ele procura denotar. Aparte da relação formal entre um professor e um pupilo, não há no AT, diferentemente do mundo clássico grego e do helenismo, nenhuma relação mestre-discípulo. Seja entre os profetas ou entre os escribas, procuramos em vão por alguma coisa que lhe seja correspondente.”[1]

 

Para Rengstorf, a razão dessa inexistência do conceito de discipulado no Antigo Testamento se deve à própria fé do antigo Israel na revelação divina (ibid., 431):

 

“Na esfera da revelação não há lugar para o estabelecimento de um relacionamento mestre-discípulo, nem a possibilidade de elaborar uma palavra humana paralela à Palavra de Deus a qual é proclamada…”[2]

 

No entanto, nem todos concordam com os pontos de vista de Rengstorf, e assim questionam a sua avaliação dos dados bíblicos que temos no texto do AT, como se pode ver na reação de Michael J. Wilkins (2015, p. 43-44):

 

“… Rengstorf parece exagerar o seu caso. Em primeiro lugar, ele desconsidera a forma adjetiva limmûd que é derivada de lâmad. Ao mesmo tempo que ele exagera a questão da ausência de terminologia, ele desconsidera a evidência que deve ser encontrada. Em segundo lugar, visto que ele define inadequadamente a relação que existe entre a terminologia e o conceito de discipulado, ele enfatiza excessivamente a ausência do discipulado. Embora ele extraia suas conclusões acerca do conceito clássico e helenístico somente a partir de um uso específico do termo mathetés (a dos Sofistas), ele fundamenta aqui a sua conclusão acerca do conceito veterotestamentário a partir da ausência de um termo específico, talmîd.”[3]  

 

Assim, como o enfatizou Wilkins, existe sim no texto do AT termos e conceitos que aparentemente estariam relacionados ao conceito de discipulado e que poderiam ajudar-nos o compreender o sentido desse conceito nesta seção fundamental da Bíblia.

 

 

  1. TERMINOLOGIA HEBRAICA DE DISCIPULADO

 

2.1 Limmûd; Talmîd

 

Em primeiro lugar, como o indicou Wilkins, seria muito propício investigar o uso bíblico do adjetivo e substantivo limmûd, que como adjetivo significa “instruído”, “experiente”; e como substantivo “aprendiz”, “pupilo”, “discípulo” (KAPELRUD, 1997, p. 4-8; SHÖKEL, 1997, p. 344-345; HOLLADAY, 2010, p. 250). O termo limmûd ocorre seis vezes no AT, nos seguintes textos: Isaías 8:16; 50:4 (2x); 54:13; Jeremias 2:24; 13:23. A investigação desses textos e do sentido do termo limmûd neles é o passo fundamental para se começar a investigar o significado do conceito do discipulado no AT.

 

 

Isaías 8:16:

“Resguarda o testemunho [te‘ûdâh], sela a lei [tôrâh] entre os Meus discípulos [limmudâi].”

 

O contexto de Isaías 8:16 é o da Guerra Siro-Efraimita contra Judá, quando o rei Rezim, rei da Síria, e o rei Peca de Israel do norte se uniram para depor o rei Acaz do trono de Judá, a fim de colocar no seu lugar um outro rei que estivesse disposto a se unir a eles na guerra que eles planejavam fazer contra a Assíria (SCHULTZ, 2009, p. 244-245). Foi nesse contexto tenso que Deus enviou a profecia de libertação ao preocupado rei Acaz, afirmando-lhe que os planos dos seus inimigos não sucederiam e que o Senhor livraria Judá das mãos deles. Como sinal da certeza do cumprimento da palavra divina se dá a profecia de Emanuel em Is 7:10-16. O rei Acaz, no entanto, preferiu confiar no socorro político-militar do poderio assírio, a quem prometeu se tornar um vassalo, em vez de confiar em Deus. Através de Seu mensageiro Isaías, o Senhor anunciou que a Assíria, o “pretenso libertador” e senhor suserano de Judá se tornaria uma ameaça muitíssimo maior do que os inimigos que agora ele enfrentava. Judá seria terrivelmente devastado pela Assíria (Is 7:17-8:22).

 

Nesse tempo de devastação e sofrimentos inimagináveis pelo qual passaria toda a nação, o Senhor dos Exércitos prometeu ser um santuário para aqueles que O temessem e seguissem as Suas advertências; mas Ele seria uma pedra de tropeço e rocha de ofensa para as duas casas de Israel, que seriam tremendamente castigados por Deus através da Assíria (Is 8:11-14). É nesse contexto de juízo divino sobre o Seu povo rebelde que ocorrem as palavras de Is 8:16, com a exortação de resguardar o testemunho e selar a lei entre “os meus discípulos [limmudâi]”. A quem se refere o termo plural de limmûd aqui nesse verso de Isaías 8? A discípulos do profeta Isaías ou a discípulos de Deus?

 

Se o verso 16 for o início da oração do profeta que segue versos 17 e 18 de Isaías 8, então o plural de limmûd seria uma referência aos discípulos do profeta Isaías. O verso é comumente interpretado como um anúncio da retirada do profeta Isaías do contexto público. Em vista da rejeição de suas mensagens proféticas, e do insucesso de sua tentativa em mudar o destino da nação, Isaías estaria então comissionando os seus oráculos aos seus discípulos a fim de serem preservados e publicados por eles em um tempo no futuro no qual poderiam ter melhor recepção e aceitação (WATTS, 1985, p. 121-124).

 

Se, no entanto, o verso 16 é o final do discurso divino dos versos anteriores, então a referência aqui seria a discípulos de YHWH, e não propriamente aos de Isaías. Nessa compreensão do verso, Deus estaria exortando a todos os Seus fiéis, a quem Ele aqui chama de Seus discípulos, e a quem Ele já tinha se referido antes nos versos 12-14, a se manterem fiéis à palavra do Senhor revelada na Sua Lei e na profecia durante os tempos difíceis de devastação e sofrimento que estavam prestes a vir. O próprio profeta Isaías responderia imediatamente à essa exortação divina na sua oração dos versos 17-18, dizendo que ele esperaria no Senhor, mesmo nesses tempos difíceis, e que ele e seus filhos (provavelmente uma referência aos seus dois filhos, Shear-Yashuv [“Um-Resto-Volverá”], de Is 7:3, e Maher-Shalal-Hash-Baz [“Rápido-Despojo-Pres-Segura”], de Is 8:3) estariam totalmente dispostos a servir de testemunhas, sinais de Deus nessas terríveis circunstâncias (OSWALT, 1993, p. 235-236).

 

A sequência do texto de Isaías 8 parece favorecer mais a segunda possibilidade de interpretação do que a primeira, em vista da série de exortações encontradas nos versos 12 a 16, expressas por meio do uso do imperativo negativo na segunda pessoa do plural três vezes no verso 12 (lô’-tômerûm, “não chameis”; lô’-tîre’û, “não temais”; lô’ ta‘arîtsû, “não fiqueis aterrorizados”), pela segunda pessoa plural do incompleto hifil do verso 13 (taqdîshû, “santificareis”/“santificai”), e pelos dois imperativos na segunda pessoa do singular no verso 16 (tsôr, “resguarda”; chatôm, “sela”). A ordem dada ao profeta no verso 16, implica resguardar o testemunho profético e selar a torá de Deus entre os Seus discípulos que estavam implícitos na segunda pessoa do plural dos versos 12 e 13.

 

A referência a esses discípulos aparece novamente como a audiência do profeta, na segunda pessoa do plural, na nova exortação que aparece nos versos 19 a 20 do mesmo capítulo de Isaías 8:

 

“Quando vos [pronome segunda pessoa do plural] disserem: Consultai [imperativo segunda pessoa do plural] os necromantes e os adivinhos, que chilreiam e murmuram, acaso, não consultará o povo ao Seu Deus? A favor dos vivos ase consultarão os mortos? À lei [tôrâh] e ao testemunho [te‘ûdâh]! Se eles não falarem dessa maneira, jamais verão a alva.”

 

A noção do discipulado em Isaías 8, portanto, implicaria nos seguintes conceitos: Primeiro, a ênfase em ser “discípulo de YHWH”, uma relação de discipulado diretamente com Deus; segundo, um discípulo de Deus ouve as advertências divinas (vv. 11-12); terceiro, ele santifica a Deus e O teme (v. 13); quarto, ele guarda, tem e segue no coração e de coração o “testemunho” e a “lei” de Deus  (v. 16 e 20); quinto, ele não dá ouvidos e não procura os meios espúrios de “revelação”, como os necromantes e adivinhos (v. 19), mas crê na Palavra revelada de Deus, a sua Lei, e no testemunho dos Seus profetas (v. 20).

 

A descrição do discípulo de Deus nos remete ao fiel que segue as orientações inspiradas dada em Dt 18:9-22, onde cada um desses temas foi tratado. Ele não aprendeu, lâmad, os costumes dos pagãos (Dt 18:9), mas deu ouvidos às palavras de Deus, dadas por meio de Seus profetas e seguiu ao Senhor (Dt 18:13-19).

 

 

Isaías 50:4:

“O Senhor YHWH me deu língua de ensinados/discípulos [limmûdîm] para sustentar o cansado com uma palavra. Ele me desperta a cada manhã, desperta-me o ouvido para escutar como os ensinados/discípulos [limmûdîm].”

 

Esse verso de Isaías é o início do 3º Cântico do Servo do Senhor (Is 50:4-11), uma passagem geralmente considerada como messiânica e que pertence a uma série de cânticos que apresentam a figura do ‘eved YHWH (“Servo de YHWH”) – Is 42:1-9; 49:1-13, 50:4-11; 52:13-53:12 (SMITH, 2009, p. 378-379). A dupla referência aos limmûdim (“discípulos”) nesse verso parece ser uma alusão a Is 8:16, como o indicou Shalom Paul (2012, p. 350). A correlação entre esses dois capítulos de Isaías é reforçada não somente pelo uso do mesmo substantivo limmûd, em Is 50:4 e 8:16, mas também pelo uso das expressões paralelas “não escondi o rosto”, em Is 50:6, e “que esconde o Seu rosto”, em Is 8:17; “O Senhor Deus me deu”, em Is 50:4, e “o Senhor me deu”, em Is 8:18 (ibid).

 

Nesse cântico o Servo do YHWH é um fiel “discípulo” de Deus e serve de modelo para todos que desejam ser fiéis discípulos também (ibid., p. 380-385). As características do discipulado presentes nesse cântico são: Primeiro, como em Isaías 8, ser “discípulo” de Deus e ser instruído por Ele (vv. 4-5); segundo, dar testemunho do que Deus fez por si, como Seu discípulo (vv. 4-9); terceiro, ser fiel a Deus a toda prova, certo da presença divina nas mais difíceis circunstâncias e de que Deus sempre vindicará Seu fiel servo (vv. 6-9); quarto, a pessoa que teme a Deus e deseja ser Seu discípulo verdadeiro, deve ouvir a voz desse ‘eved YHWH (“Servo de YHWH”) (v. 10a); quinto, ela deve ter temor a Deus, confiar nele e nele se firmar (v. 10b).

 

 

Isaías 54:13:

“Todos os teus filhos serão ensinados/discípulos [limmûdei] de YHWH, e grande será a paz dos teus filhos.”

 

Essa é a última ocorrência do termo limmûd no livro de Isaías, e ocorre dentro de uma profecia de restauração, profecia sobre o futuro glorioso de Sião (Is 54:1-17). Entre as diversas promessas gloriosas feitas para esse futuro está a de que todos os filhos de Sião seriam limmûdei YHWH (“discípulos do Senhor”). De forma consistente, a ideia de discipulado no livro de Isaías é a de que o ser humano é chamado para ser discípulo de Deus. Em todas as ocorrências do termo limmûd no livro essa parece ser sempre a nota tônica. O uso do termo aqui conecta essa passagem com as anteriores onde o mesmo apareceu (Is 8:16 e 50:4; cf. PAUL, 2012, p. 430). A ideia do que implica ser esse tipo de discípulo aqui não é desenvolvida nesse texto bíblico e no seu contexto imediato. O uso de limmûdei YHWH, no entanto, pressupõe tudo o que já foi dito antes no livro do que é ser discípulo de Deus.

 

A ideia do discipulado do verso 13 está conectada no texto com o tema da aliança de Deus com o Seu povo, enfatizado nos versos 5-10. Essa conexão cria um paralelo muito próximo com o texto de Is 59:21: “Quanto a Mim, esta é minha aliança com eles, diz o Senhor: o meu Espírito, que está sobre ti, e as minha palavras, que pus na tua boca, não se apartarão dela, nem da de teus filhos, nem da dos filhos de teus filhos, não se apartarão desde agora e para todo sempre, diz o Senhor.” (Ibid., p. 429). Esse texto ecoa muitas das ideias presentes nos Cânticos do Servo do Servo, tais como a unção do Espírito de Deus sobre seus servos fieis (// com 1º Cântico, Is 42:1, que em si evoca Is 11:2); a instrução divina na frase “que pus na tua boca” (// com o 3º Cântico, Is 50:4-5); e a fidelidade à palavra de Deus, “não se apartarão dela”, assim como Deus é fiel ao Seu povo (// Is 54:10).

 

Esses textos impactam assim a compreensão do discipulado no livro de Isaías, acrescentado a ideia da unção do Espírito Santo sobre o discípulo de Deus às ideias já previamente enfatizadas da instrução divina ao discípulo, e da fidelidade do discípulo à palavra de Deus.

 

As duas demais ocorrências do termo limmûd no AT, em Jr 2:24 e 13:23 não têm muita contribuição à compreensão do conceito de discipulado no AT. No primeiro texto, Jr 2:24, o termo limmûd é usado na metáfora de uma jumenta selvagem “acostumada” com o deserto, que no ardor do cio gosta de sorver o vento, para exemplificar Israel e sua paixão desenfreada pela idolatria. No segundo texto, Jr. 13:23, limmûd é usado para expressar a ideia de que é impossível alguém fazer o bem uma vez que essa pessoa se “acostumou” a fazer o mal.

 

 

1 Crônicas 25:8:

“Deitaram as sortes dos turnos, tanto do pequeno como do grande, o entendido/mestre [mêvîm] com o aprendiz/discípulo [talmîd].”

 

Nesse texto de 1 Crônicas, se encontra a única ocorrência no AT do termo talmîd (“discípulo”), o termo hebraico mais próximo do grego mathetés, termo fundamental para o estudo do discipulado no mundo grego e no Novo Testamento.  O contexto de 1Cr 25:8 é o da organização do serviço dos cantores levitas no templo feito por Davi no final de sua vida. A ideia de discipulado aqui estaria relacionada com o processo de aprendizado (KLEIN, 2006, p. 483): o “mestre/entendido/grande” e o “aprendiz/discípulo/pequeno” (implícito no paralelismo entre os dois está o processo de ensino). Em 1Cr 25:7 os mestres/entendidos são designados como “instruídos [melummdei] no canto de YHWH” (usando uma forma de um particípio passivo do verbo lâmad). Eles eram os que aprenderam e se tornaram então os entendidos/professores que deveriam ensinar/discipular os novos inexperientes, representados pelo termo talmîd (substantivo também derivado da raiz lâmad) no verso 8.

 

A contribuição importante desse único verso à compreensão do discipulado no AT é a dimensão do ato do aprendizado e ensino e a responsabilidade do discipular. O que aprendeu e se tornou entendido e competente, deve se tornar um discipulador, instruindo os que ainda não têm experiência e conhecimento.

 

 

2.2. SHÂRÊT-MESHÂRÊT; ADON – ‘EVED; ’AV – BEN; ’EM – BEN

 

A histórias dos profetas Elias e Eliseu e o livro de Provérvios aparentemente apontam para outros possíveis aspectos da compreensão veterotestamentário do discipulado, principalmente através do uso dos termos hebraicos shârêt (“servir”) – meshârêt (“servidor”), ’adon (“senhor”) – ‘eved (“servo”), ’âv (¨pai¨) ou ’êm (“mãe”) – bên (“filho”), e de diferentes temas que indicam essa relação.

 

O ciclo das histórias de Elias e do chamado e início do ministério de Eliseu remete o leitor bíblico à figura de Moisés no Pentateuco, como o indicou John J. Bimson (1994, p. 362-363). Elias aparece no texto bíblico como um profeta semelhante a Moisés, um “segundo Moisés” em sua defesa pela fé em YHWH, o Deus de Israel. Como Moisés, Elias enfatiza os compromissos da aliança entre Deus e o Seu povo (1Rs 18:18-39). Ele executa os idólatras no monte Carmelo em paralelo ao que Moisés fez na história da idolatria do bezerro de ouro aos pés do Sinai (1Rs 18:40). Procurando aparentemente reviver a experiência de Moisés, Elias busca a presença divina e Sua revelação no monte Horebe/Sinai (1Rs 19:8-18). A vida de Elias, como a de Moisés, têm um final misterioso na margem oriental do Rio Jordão na região de Gilgal (2Rs 2:1-18).

 

Sendo Elias um “segundo Moisés”, a figura de Eliseu aparece então no texto bíblico em paralelo com a de Josué, o sucessor de Moisés (ibid., p. 363). O próprio nome Eliseu (“El é salvação”) é um paralelo ao nome Josué (“YHWH é salvação”). Como Josué, ele cruza o Jordão em direção à margem ocidental do rio, entrando na terra prometida (2Rs 2:14) e logo segue em direção a Jericó (2Rs 2:15-22). A referência à divisão das águas do rio Jordão em 2 Reis 2 também apontam para as histórias de Moisés e Josué (divisão do Mar Vermelho e do rio Jordão), como também o faz a dotação especial do Espírito de Elias sobre Eliseu (2Rs 2:9, 14-15) como aconteceu com Josué em relação a Moisés (Dt 34:9).

 

Nesses ciclos de histórias bíblicas e no paralelismo entre Elias/Moisés e Eliseu/Josué importantes aspectos do conceito do discipulado no AT emergem e se tornam significativos. De um lado, o discipulado no AT envolve a preparação de um sucessor: A ordem divina comissionou Elias a ungir Eliseu como um “profeta em teu lugar” (1Rs 19:16), como o tinha feito ao ordenar Moisés em relação a Josué (Nú 27:18-23). Da parte do discipulador isso envolvia os atos de buscar, encarregar, preparar/instruir e encorajar esse sucessor (Elias-Eliseu, 1Rs 19:19-21; 2Rs 2:1-10; Moisés-Josué, Nú 27:18, 22; 32:28; Dt 1:38; 3:21-22, 28; 31:7). Da parte do discípulo, os atos de aceitar, seguir/aprender e servir (Eliseu-Elias, 1Kgs 19:20-21; Josué-Moisés, Nú 27:22-23; Js 1:1-18).

 

Como discípulo Eliseu serviu (sharet) Elias (1Rs 19:21), e Josué era conhecido como o “servidor” (meshârêt) de Moisés (Ex 24:13; 33:11; Js 1:1). A ênfase no serviço é marcante no conceito do AT de discipulado, e ela aparece fortemente na descrição do “Servo de YHWH” como modelo para o verdadeiro “aprendiz/discípulo” em Is 50:4. Nessa linha de ênfase no serviço, Moisés é designado como ‘eved YHWH, “servo de YHWH” (Êx 14:31; Nú 12:7-8; Dt 34:5; Js 1:1-2) e Josué, que serviu Moisés, se tornou conhecido também um “servo de YHWH” (Js 24:29; Jz 2:8). Elias também é designado como “servo de YHWH” (1Rs 18:36; 2Rs 9:36; 10:10). Essa ênfase no serviço é também expressa pelo uso do vocabulário “senhor” (’adon) em relação ao mestre/discipulador, como no caso de Elias-Eliseu (2Rs 2:3, 5), e os termos “pai” (’âv) e “filho” (bên), na relação Elias-Eliseu, bem como na relação deles com os discípulos da escola dos profetas, os benêy hannevî’îm, os “filhos dos profetas” (2Rs 2:3, 5, 7, 12, 15; 4:1, 38; 6:1; 9:1). Todos esses termos implicam um convívio muito próximo, como de um mestre e o seu servo, como de um pai e o seu filho. 2Rs 4:38 diz que Eliseu se assentava com os seus discípulos, os “filhos dos profetas”, e 2Rs 6:1-7 diz que Eliseu habitava com eles e que se envolvia na solução de problemas comuns desse convívio, como foi o caso do corte de madeira na mata às margens do Jordão, para alargar o espaço do local onde eles viviam, e o milagre de fazer flutuar o machado emprestado que caiu por acidente nas águas do rio. O discípulo seguia o seu mestre muito de perto, e participava do seu ministério, como foi o caso de um não identificado “filho dos profetas” em  2Rs 9:1-3, e o de Geazi, que aparentemente estava sendo preparado para suceder Eliseu, mas que no final se desviou do caminho do serviço a Deus por ganância (2Rs 4:8-36; 5:20-27; 8:4-5).

 

É pertinente notar que o Novo Testamento reconheceu na experiência de Elias com Eliseu, um paradigma de discipulado no período veterotestamentário.  O texto de Lc 9:59-62, que descreve as respostas de Jesus a pessoas que queriam se tornar Seus discípulos, ecoa o chamado de Eliseu em 1Rs 19:19-21 (DeVRIES, 1985, p. 239-240; Bimson, 1994, p. 359; HOUSE, 1995, p. 225).

 

Uma outra possível expressão veterotestamentária da experiência de discipulado pode ser encontrada no livro de Provérbios, na qual a relação “mestre”-“discípulo” aparece expressa nos diálogos de instrução e orientação de um “pai” (’âv), ou de uma “mãe” (’êm), com o seu “filho” (bên), como em Pv 1:8, 15; 2:1; 3:1, 11, 21; 4:1, 3-4; etc. O foco desse ensino é a geração mais jovem que necessita adquirir sabedoria, ensino, prudência, discernimento, habilidades e inteligência, no bom proceder, na justiça, no juízo, na equidade, no bom siso, que a levem ao temor do Senhor (Pv. 1:2-7). Esse discipulado das novas gerações no temor do Senhor estava primeiramente fundamentado no lar, sendo o pai e a mãe os mestres, e seus filhos os discípulos. Os termos hebraicos para pais e filhos podem ser assim compreendidos de forma literal, como o paralelismo entre Pv 1:8; 4:3, onde ocorre o termo “mãe” (’êm) além do temo pai (’âv), com Pv 31:1-2 indica, pois nesse último texto se faz referência à mãe do rei Lemuel, que era literalmente filho do seu ventre e de seus votos. Esse discipulado no lar seria assim uma expressão prática do cumprimento do grande mandamento de Dt 6:4-9, onde o ato de amar a Deus sobre todas as coisas está diretamente ligado ao ensino consistente dos filhos nos caminhos do Senhor (GARRETT, 1993, p. 23-24).

 

Outros prováveis contextos de educação e discipulado das novas gerações de israelitas, segundo o livro de Provérbios, parecem ser: 1) A corte real, como as referências a Salomão, como autor da maioria dos provérbios do livro (Pv. 1:1; 10:1; 25:1), aos homens do rei Ezequias, que transcreveram parte dos provérbios de Salomão (Pv. 25:1), e ao rei Lemuel (Pv. 31:1), parecem indicar (GOLDINGAY, 1994, p. 583; WALTKE, 2011, v. 1, p. 103-108); 2) Os lugares públicos da cidade, principalmente as praças e as portas da cidade, onde os anciãos e as pessoas sábias instruíam os jovens, como Pv 1:20-21 e Jó 29:7-25 parecem indicar (FOX, 2008, p. 97-98; WILKINS, 2015, p. 91).

 

 

  1. CONCLUSÃO: RESUMO DO DISCIPULADO NO AT

 

A presente investigação do sentido do tema do discipulado no AT explorou, primeiramente, o uso bíblico do adjetivo e substantivo limmûd (“instruído”, “experiente”; “aprendiz”, “pupilo”, “discípulo”) nos textos bíblicos de Isaías 8:16; 50:4 e 54:13.

 

A noção do discipulado que aparece em Isaías 8 apontou para os seguintes conceitos: Primeiro, a ênfase em ser “discípulo de YHWH”, uma relação de discipulado diretamente com Deus (v. 16); segundo, um discípulo de Deus ouve as advertências divinas (vv. 11-12); terceiro, ele santifica a Deus e O teme (v. 13); quarto, ele guarda, tem e segue no coração e de coração o “testemunho” e a “lei” de Deus  (v. 16 e 20); quinto, ele não dá ouvidos e não procura os meios espúrios de “revelação”, como os necromantes e adivinhos (v. 19), mas crê na Palavra revelada de Deus, a sua Lei, e no testemunho dos Seus profetas (v. 20). Essa descrição do discípulo de Deus nos remete ao fiel que segue as orientações inspiradas dada em Dt 18:9-22, onde cada um desses temas foi tratado. Ele não aprendeu, lâmad, os costumes dos pagãos (Dt 18:9), mas deu ouvidos às palavras de Deus, dadas por meio de Seus profetas e seguiu ao Senhor (Dt 18:13-19).

 

No 3º Cântico do Servo do Senhor (Is 50:4-11), a figura messiânica do ‘eved YHWH (“Servo de YHWH”) é apresentado como um fiel “discípulo” de Deus (v. 4) que serve de modelo para todos que desejam ser Seus fiéis discípulos também. O discipulado, segundo esse texto de Isaías, envolve, primeiramente, como em Isaías 8, ser “discípulo” de Deus e ser instruído por Ele (vv. 4-5); segundo, dar testemunho do que Deus fez por si, como Seu discípulo (vv. 4-9); terceiro, ser fiel a Deus a toda prova, certo da presença divina nas mais difíceis circunstâncias e de que Deus sempre vindicará Seu fiel servo (vv. 6-9); quarto, a pessoa que teme a Deus e deseja ser Seu discípulo verdadeiro, deve ouvir a voz desse ‘eved YHWH (“Servo de YHWH”) (v. 10a); quinto, ela deve ter temor a Deus, confiar nele e nele se firmar (v. 10b).

 

Já em Is 54:13 ocorre uma profecia escatológica segundo a qual todos os filhos de Sião seriam limmûdei YHWH (“discípulos do Senhor”). Esse verso reforça assim a ênfase isaiânica de discipulado segundo a qual o ser humano é chamado para ser discípulo de Deus. Além disso, a ideia do discipulado do verso 13, no contexto da profecia, está relacionada com o tema da aliança de Deus com o Seu povo, enfatizado nos versos 5-10. Essa conexão cria um paralelo muito próximo com o texto de Is 59:21 e acrescenta a noção da unção do Espírito Santo sobre o discípulo de Deus às ideias já previamente enfatizadas sobre o discipulado em Isaías 8 e 50.

 

Após abordar o uso de limmûd, em textos pertinentes à noção do discipulado no AT, investigou-se também a única ocorrência bíblica do termo talmîd (“discípulo”) em 1Cr 25:8. Esse texto de 1 Crônicas trata da organização do serviço dos cantores levitas no templo feita por Davi no final de sua vida. A ideia de discipulado aqui estaria relacionada com o processo de aprendizado entre o “mestre” e o “aprendiz/discípulo”. Os mestres/entendidos são designados como “instruídos [melummdei] no canto de YHWH”, em 1Cr 25:7, e eles deveriam ensinar/discipular os novos inexperientes, representados pelo termo talmîd no verso 8. Assim, esse texto chama atenção à importância do ato do aprendizado e ensino e à responsabilidade do discipular. O que aprendeu e se tornou entendido e competente, deve se tornar um discipulador, instruindo os que ainda não têm experiência e conhecimento.

 

Finalmente, se explorou o uso dos termos hebraicos shârêt (“servir”) – meshârêt (“servidor”), ’adon (“senhor”) – ‘eved (“servo”), ’âv (¨pai¨) ou ’êm (“mãe”) – bên (“filho”), e temas a eles relacionados, nos ciclos de histórias de Elias-Eliseu e de Moisés-Josué, e no livro de Provérbios.

 

O ciclo de histórias de Elias-Eliseu e de Moisés-Josué indicam que o discipulado no AT envolve a preparação de um sucessor. Sob a ordem divina, Elias ungiu Eliseu como um “profeta em teu lugar” (1Rs 19:16), como o tinha feito Moisés em relação a Josué (Nú 27:18-23). Elias e Moisés como discipuladores tinham de buscar, encarregar, preparar/instruir, encorajar o seu sucessor. Já Eliseu e Josué, como discípulos, tinham de aceitar, seguir/aprender e servir o mestre discipulador. A ênfase no serviço é marcante no conceito do AT de discipulado, sendo claramente expressa pelo uso do verbo sharet (“servir”) em relação a Eliseu, e do substantivo meshârêt (“servidor”), em relação a Josué. Esse conceito de serviço nos ciclos de histórias de Elias-Elias e Moisés-Josué está em paralelo com a mesma ênfase encontrada na descrição do “Servo de YHWH” como modelo para o verdadeiro “aprendiz/discípulo” em Is 50:4. Assim, o verdadeiro discípulo deve se tornar não meramente um servo do seu mestre/discipulador, mas sobre tudo um “servo de YHWH”. Essa ênfase no serviço é também expressa pelo uso do vocabulário ’adon (“senhor”) em relação ao mestre/discipulador, bem como dos termos ’âv (“pai”) e bên (“filho”), na relação mesree-discípulo. Esses termos implicam um convívio muito próximo, como de um mestre e o seu servo, como de um pai e o seu filho. O texto bíblico descreve Eliseu como habitando com os seus discípulos, os “filhos dos profetas” e se envolvendo na solução de problemas comuns desse convívio. O discípulo seguia o seu mestre muito de perto, e participava do seu ministério, na sua preparação de uma vida de serviço.

 

No livro de Provérbios, a relação “mestre”-“discípulo” aparece expressa nos diálogos de instrução e orientação de um “pai” (’âv), ou de uma “mãe” (’êm), com o seu “filho” (bên), a fim de ensinar a geração mais jovem a sabedoria, o ensino, a prudência, o discernimento, as habilidades e inteligência no bom proceder, na justiça, no juízo, na equidade e no bom siso, que a levassem ao temor do Senhor (Pv. 1:2-7). Esse discipulado das novas gerações no temor do Senhor estava primeiramente fundamentado no lar, sendo o pai e a mãe os mestres, e seus filhos os discípulos. O discipulado no lar seria assim uma expressão prática do cumprimento do grande mandamento de Dt 6:4-9, onde o ato de amar a Deus sobre todas as coisas está diretamente ligado ao ensino consistente dos filhos nos caminhos do Senhor. Além do lar, outros prováveis contextos de educação e discipulado dessas novas gerações de israelitas parecem ter sido a corte real, onde jovens seriam preparados para o serviço a Deus e à nação, e os lugares públicos da cidade, principalmente as praças e as portas da cidade, onde os anciãos e as pessoas sábias instruíam os jovens inexperientes.

 

 

REFERÊNCIAS:

 

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Referência: Este artigo foi publicado no original em espanhol. Ver o livro: Discipulado, reflexiones biblicas, teológicas y prácticas.

[1] “If the term is missing, so, too, is that which it serves to denote.  Apart from the formal relation of teacher and pupil, the OT, unlike the classical Greek world and Hellenism, has no master-disciple relation. Whether among prophets or the scribes we seek in vain for anything corresponding to it.”

 

[2] “In the sphere of revelation there is no place for the establishment of a master-disciple relation, nor is there the possibility of setting up a human word alongside the Word of God which is proclaimed…”

 

[3] “… Rengstorf appears to overstate his case. In the first place he overlooks the adjectival form limmûdh which is derived from lâmadh. Even as he overstates the absence of terminology, he overlooks that evidence which is to be found. In the second place, because he inadequately defines the relationship between the terminology and concept of discipleship, he inordinately overstates the absence of discipleship. Although he draws his conclusions about the classical and Hellenistic concept from only one particular usage of the term μαθητής (the Sophists), here he draws his conclusions about the Old Testament concept from the absence of one particular term, talmîdh.”

 

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