O dom de profecia no púlpito

“Nossa atitude e crença têm por base a Bíblia. E nunca queremos que pessoa nenhuma faça prevalecer os testemunhos sobre a Bíblia” (Ellen White)

Todo pastor adventista deve se valer dos escritos de Ellen G. White, ao buscar compreender as Escrituras e preparar sermões. Porém, deve ser cuidadoso com relação ao seu modo de expor a mensagem, considerando a compreensão e atitude dos ouvintes para com o assunto. Desse modo, quando falar a incrédu-los buscando atraí-los a Cristo, não convém mencionar nem Ellen White nem suas visões, conforme ela mesma ensinou[1] e segundo a orientação do apóstolo Paulo no sentido de que “a profecia não é para os incrédulos, e sim para os que creem” (1Co 14:22).

Caso os ouvintes sejam membros da igreja, mas não tenham opinião formada ou rejeitem essa doutrina, é imprescindível que primeiro esta lhes seja claramente ensinada. Se isso não for feito, pode-se dar como certo que eles simplesmente desconsiderarão o que for proferido no sermão como sendo proveniente de Ellen White.

Prioridade da Bíblia

Costumamos chamar os escritos de Ellen White de “Espírito de Profecia”. Antigamente, porém, os adventistas os chamavam de “Testemunhos”. Tendo isso em mente, observe algumas de suas declarações: “Nossa atitude e crença têm por base a Bíblia. E nunca queremos que pessoa nenhuma faça prevalecer os testemunhos sobre a Bíblia.” “Não devem os testemunhos da irmã White ser postos na dianteira.”[2]

Tais conselhos mostram a posição de seus escritos em relação à Bíblia e advertem quanto a empregos inadequados do que ela escreveu. Segundo a orientação que ela mesma deu, não é correto substiuir a leitura e o estudo da Palavra por seus escritos. Não se deve ir ao púlpito, abrir um de seus livros e simplesmente pregar o que ali está exposto, deixando de lado a Bíblia. O pregador também não deve começar o sermão com algo que ela escreveu para, depois, se voltar para a Bíblia, nem enfatizar seus escritos acima da Bíblia. Isso é colocar os testemunhos na dianteira das Escrituras.

Ao estabelecer a relação entre a Bíblia e seus escritos, ela observou: “Os testemunhos do Espírito de Deus são dados para dirigir os homens à Sua Palavra, que tem sido negligenciada”.[3] “Pouca atenção é dada à Bíblia, e o Senhor deu uma luz menor para levar homens e mulheres à luz maior”.[4] Seus escritos são chamados de “luz menor”, no que diz respeito não ao grau de inspiração, mas à função deles,[5] ou seja, conduzir as pessoas à Bíblia e auxiliar na compreensão dela. A Bíblia é a luz maior cuja função é nos levar a Cristo e à salvação (Jo 5:39).

Portanto, o procedimento correto consiste em ler as Escrituras em público e, depois, explicá-la e extrair alguma aplicação, fazendo uso, também, da revelação de Deus por meio dos escritos de Ellen White. Desse modo, a Bíblia não será descartada nem colocada em segundo plano, mas ocupará o lugar de honra que lhe é devido, tendo primazia e sendo a base do sermão.

Ângulo de abordagem

Basicamente há três maneiras pelas quais Ellen White abordava o texto bíblico: interpretando, reinterpretando e aplicando. A interpretação do texto diz respeito ao seu significado para quem o escreveu. Quando a Sra. White interpreta um texto bíblico, ela o faz com fidelidade. A reinterpretação de um texto consiste em retirá-lo do contexto imediato em que está inserido e colocá-lo em outro, outra época, outro lugar, dizendo respeito a outras pessoas. É necessário ressaltar que um texto só pode ser reinterpretado por alguém que seja inspirado por Deus, como é o caso dos profetas. Os escritores do Novo Testamento reinterpretaram textos bíblicos.

Aplicação do texto significa extrair dele a lição espiritual para a vida presente. O pregador deve perguntar: “como este texto ajuda a mim e aos ouvintes em meio às nossas lutas, necessidades e desafios?” A aplicação deve contribuir para moldar nosso caráter e conduta, e está relacionada ao ser e ao fazer.[6] Na grande maioria dos escritos de Ellen White que comentam passagens bíblicas, ela apenas extrai lições espirituais do texto sagrado aplicando-as conforme a necessidade do momento.[7]

Sendo assim, ao usarmos os comentários de Ellen White sobre o texto bíblico, devemos nos certificar do ângulo pelo qual ela o está analisando. Está interpretando, ou aplicando? Pouquíssimas vezes, seu comentário parece abranger quase tudo o que pode ser dito sobre determinada parte da Bíblia – como acontece em um capítulo dos Testemunhos Seletos, intitulado “Josué e o Anjo”. Ela inicia interpretando, mostrando o significado da profecia de Zacarias para os contemporâneos do profeta, no ano 520 a. C., os quais haviam retornado do exílio babilônico e estavam reconstruindo suas cidades e o templo. Depois passa à aplicação, explicando como Satanás procura hoje nos desanimar e como Cristo defende os que nEle creem. Finalmente, reinterpreta o texto, demonstrando como a profecia se refere “com força particular à experiência do povo de Deus” no tempo de angústia que ocorrerá imediatamente antes da volta de Cristo.[8]

Portanto, se ela estiver apenas interpretando um texto bíblico, podemos extrair lições espirituais além daquilo que ela comenta. Se estiver apenas aplicando, estudando com afinco na busca da interpretação, podemos ter maior entendimento do significado original do texto. Mas também devemos considerar que, algumas vezes, ela não está nem interpretando nem aplicando o texto, mas reinterpretando-o, dando-lhe significado diferente daquele pretendido pelo escritor original. Nesse caso, também há outros significados no texto que ela não está levando em conta no momento.

Há textos bíblicos sobre os quais a Sra. White nunca fez nenhum comentário, há os que ela apenas interpretou, há outros que foram somente

reinterpretados, e existem aqueles dos quais ela extraiu algumas lições práticas. Com base nisso, somos levados a concluir que, embora seu comentário sobre algum texto seja sempre verdadeiro, pode não abranger toda a verdade ali inserida. Nesse caso, não seria a palavra final sobre essa passagem,[9] porque mediante estudo, de outro ângulo, podemos ter maior entendimento. O fato de sermos altamente privilegiados em ter seus escritos não deve servir de pretexto para nos contentarmos com o que ela nos legou, e nos acomodarmos deixando de pesquisar com maior dedicação e profundidade as Escrituras.

Regras de interpretação

A correta interpretação de qualquer texto é feita respeitando-se determinadas regras fornecidas por uma ciência chamada hermenêutica. Isso é válido para escritos seculares e religiosos, sejam eles inspirados ou não. Citamos duas das regras mais significativas, que precisam ser aplicadas aos escritos de Ellen White; caso contrário, corre-se o risco de se ter má compreensão e, consequentemente, conduta diferente da que Deus havia planejado.

1) Considere o contexto histórico. Significa levar em conta a situação envolvida, as circunstâncias em que se encontravam o autor e os primeiros destinatários do escrito. Devemos buscar respostas para as seguintes perguntas: Quem escreveu? Quando? Onde? Para quem? Por quê? Vejamos um exemplo: Em certa ocasião, Ellen White escreveu: “ovos não devem ser colocados em sua mesa”.[10] Superficialmente, poderíamos concluir que ninguém deve comer ovos. Contudo, esse conselho faz parte de uma carta-testemunho enviada a um casal cujos filhos estavam formando o hábito da masturbação e comer ovos os estimulava. Essa orientação era válida para a família que a recebeu e, por extensão, para qualquer outra pessoa que passe pela mesma situação; mas não para todas as pessoas.

Em outra ocasião, ela aconselhou: “Ovos contêm propriedades que são agentes medicinais para combater venenos. Conquanto tenham sido dadas advertências contra o uso desses artigos em famílias onde as crianças eram viciadas no hábito do abuso próprio, contudo não devemos considerar negação do princípio usar ovos de galinhas bem cuidadas e alimentadas devidamente…”[11] A própria Ellen G. White aconselhou: “Quanto aos testemunhos… o tempo e o lugar, porém, têm que ser considerados.”[12]

2) Contexto mais amplo. Procuremos estudar tudo o que ela escreveu sobre o assunto que estamos pesquisando. Não nos prendamos a uma frase ou parágrafo. Como exemplo, mencionamos seu ensino sobre o uso da carne como alimento. Nos tempos bíblicos, todos comiam carne: sacerdotes, profetas, apóstolos, o povo de Israel, os primeiros cristãos e o próprio Jesus. Contudo, como tem havido muitas doenças nos animais, a Sra. White foi incumbida por Deus de nos orientar nessa questão. Notemos algumas de suas declarações: “Muitos que são agora só meio convertidos quanto à questão de não comer carne, sairão do povo de Deus, para não mais andar com ele.”[13] Parece uma declaração muito forte, mas vejamos outras: “O regime cárneo não é o mais saudável, e, todavia eu não tomaria a atitude de que ele deva ser rejeitado por toda pessoa. Os que têm órgãos digestivos fracos podem muitas vezes comer carne, quando não lhes é possível ingerir verduras, frutas e mingaus.”[14]

“Entre o povo em geral [na Austrália], a carne é usada largamente, por todas as classes. É o artigo de alimentação mais barato; e mesmo onde a pobreza impera encontra-se em geral carne sobre a mesa. Por isso, tanto maior a necessidade de usar de prudência ao lidar com a questão de comer carne… Nunca julguei ser meu dever dizer que ninguém deveria provar carne, sob quaisquer circunstâncias. Dizer isso, quando o povo tem sido educado a viver de comer carne em tão grande medida, seria levar ao extremo a questão.”[15]

“Em certos casos de doença ou exaustão, poderá ser considerado melhor usar alguma carne, mas grande cuidado deve ser tomado para adquirir carne de animais sadios.”[16] “Quando não me foi possível obter o alimento de que necessitava, comi um pouco de carne algumas vezes, mas estou ficando cada vez mais atemorizada de fazê-lo.”[17] “Não nos compete fazer do uso da alimentação cárnea uma prova de comunhão.”[18]

Assim, percebe-se que há situações em que a carne pode servir como alimento. Mas para que não imaginemos que tanto faz comer ou não comer carne, citamos mais um parágrafo que nos aponta o rumo a seguir: “Entre os que estão aguardando a vinda do Senhor, o comer carne será afinal abandonado; a carne deixará de fazer parte de sua alimentação. Devemos ter sempre isso em vista, e esforçar-nos por trabalhar firmemente nessa direção.”[19]

Além dessas regras, sugerimos mais dois procedimentos: (1) que não se confie em boatos sobre o que ela escreveu, mas se confira o escrito pessoalmente; (2) seja considerado que um indivíduo não se torna onisciente pelo fato de Deus lhe haver concedido o dom profético. Os profetas sabiam apenas aquilo que Deus achava por bem lhes revelar. Alguns dos textos que julgamos mais difíceis na Bíblia nunca foram explicados por nenhum profeta nem por Ellen White. Cerca de meio ano antes de sua morte, alguns irmãos desejavam saber exatamente quem eram os 144 mil que seriam assinalados no tempo do fim (Ap 7:1-8; 14:1-5). No passado, ela já havia escrito a esse respeito, mas os irmãos queriam mais informações. Sua resposta foi: “Não tenho luz sobre o assunto… Tenha a bondade de dizer a meus irmãos que nada me foi apresentado acerca das circunstâncias de que escrevem, e só lhes posso expor aquilo que me foi apresentado.”[20]

Em suma, as Sagradas Escrituras devem ter a primazia e ser a base dos nossos sermões. Os escritos de Ellen White precisam ser considerados em seu verdadeiro papel: auxiliar na compreensão e na aplicação do texto sagrado. Também é verdade que, embora seus comentários sobre algum texto sejam sempre verdadeiros, pelo fato de ela não ter considerado tudo o que nele está inserido, é possível, mediante estudo, ter maior compreensão do texto. Há, ainda, necessidade tanto de se pregar sermões que mostrem pela Bíblia o valor do dom profético bem como de se conhecer e respeitar as regras de interpretação quando se busca entender o que ela escreveu. Mas, acima de tudo, destaca-se a necessidade de iluminação do Espírito Santo para nos guiar na pesquisa da verdade, pois somente Aquele que inspirou apóstolos e profetas a escrever as mensagens de Deus pode nos capacitar a entender tudo o que é necessário em nosso preparo para a eternidade.

Referências:
1 Ellen G. White, Testemunhos Para a Igreja, v. 1, p. 119, 120.
2 ___________, Evangelismo, p. 256.
3 ___________, Mensagens Escolhidas, v. 1, p. 46.
4 ___________, Evangelismo, p. 257.
5 Gerhard Pfandl, Compreendendo as Escrituras: Uma Abordagem Adventista (Engenheiro Coelho: Unaspress, 2007), p. 309.
6 Bruce Wilkinson, As Sete Leis do Aprendizado, (Belo Horizonte: Betânia, 1998), p. 106.
7 Robert W. Olson, One Hundred and One Question on the Sanctuary and Ellen White (Washington, DC: Ellen White State, 1981), p. 41.
8 Ellen G. White, Testemunhos Seletos, v. 2, p. 170-179.
9 Gerhard Pfandl, Op. Cit., p. 316.
10 Ellen G. White, Testemunhos Para a Igreja, v. 2, p. 400.
11 ___________, Conselhos Sobre o Regime Alimentar, p. 204, 205.
12 ___________, Mensagens Escolhidas, v. 1, p. 57.
13 ___________, Conselhos Sobre o Regime Alimentar, p. 382.
14 Ibid., p. 394, 395.
15 Ibid., p. 462, 463.
16 Ibid., p. 394.
17 Ibid.
18 Testemunhos Seletos, v. 3, p. 359.
19 Conselhos Sobre o Regime Alimentar, p. 380. 20 Mensagens Escolhidas, v. 3, p. 51.