O Evangelho como missão integral: os desafios de uma assistência contextualizada
Wagner Kuhn
A tarefa de contextualizar o Evangelho por meio de ministérios de assistência e desenvolvimento envolve muitos desafios e oportunidades. Desafios ocorrem porque quando o Evangelho está sendo con- textualizado existe o risco de incluir mais do que aquilo que é necessário. Há o risco de considerar a cultura de alguém como melhor, o seu comportamento como mais ideal, sua religião como superior, e seus atos de caridade para justificar sua ética humanitária. Ao mesmo tempo, existe o risco de não incluir o que é realmente necessário.
No entanto, muitas pessoas irão ver ou ouvir a verdade do Evangelho pela primeira vez durante uma situação de crise ou através de programas de desenvolvimento em que aqueles que fornecem ajuda física, emocional, material ou educacional também compartilham a verdade espiritual do Evangelho de forma indireta. Essa é a esperança trazida a eles.
É importante notar que, apesar de existirem desafios no processo de contextualizar o Evangelho por meio de ministérios de assistência e desenvolvimento, as oportunidades são muitas, e mais esforços devem ser empregados nesse tipo de missão. Mesmo quando as pessoas não estão fazendo a decisão de aderir à igreja, o Evangelho é vivido e demonstrado, e, como a Bíblia declara, a semente vai produzir frutos na época de colheita.
Contextualização na teoria e prática
A contextualização1 do Evangelho significa que o Evangelho tem sido não só comunicado, mas também tem sido entendido, vivido, e tem transforma- do indivíduos e comunidades, bem como a sua cultura. Se os cristãos devem comunicar a mensagem do evangelho a outras culturas, eles devem encontrar maneiras de torná-lo compreensível sem perder a mensagem em armadilhas culturais. O Evangelho tem múltiplas facetas, das quais auxílio e desenvolvi- mento são parte integrante. Assim, a integração de palavra e ação, ser e fazer, deve ser sempre o foco da verdadeira missão integral.
Por muitos anos, mas principalmente durante a era colonial, os missionários cristãos (principalmente protestantes) entenderam que, para que as pessoas se tornassem cristãs, elas deveriam, igualmente, adotar diversos elementos da cultura ocidental — eles tinham que aceitar a cultura do missionário. Atualmente, muita coisa mudou, principalmente na forma como os missionários do Ocidente têm tentado ser mais sensíveis em relação às culturas não ocidentais e à forma como se adaptaram ou contextualizaram a obra e a mensagem do Evangelho. Para muitos, o Evangelho está acima da cultura, mas deve ser entendido em todo o contexto cultural.
Definições
A contextualização crítica ajuda as pessoas a entender que o Evangelho é apresentado como uma mensagem de salvação não do Ocidente ao Oriente nem do Norte ao Sul, mas de Deus a todos os povos, culturas e nações. O evangelho como expresso na Palavra de Deus, julga a cultura, e como tal,
A tradução da Bíblia é uma das melhores formas de contextualizar o Evangelho para outras culturas. É a maneira de Deus falar com as pessoas em sua própria língua . Como Jesus continuou a ser Deus quando tomou a forma humana, o mesmo acontece com as Escrituras — ela continua a ser a revelação divina de Deus mesmo quando é escrita em diferentes línguas. Portanto, a verdadeira contextualização é muito mais do que a simples comunicação do Evangelho. Significa que o Evangelho tem sido ex- plicado, compreendido, vivido e frutificado; esse Deus está trabalhando ativamente nos corações das pessoas, transformando-as em novas criaturas; que a Palavra eterna transformou suas vidas, suas sociedades e sua cultura (HIEBERT; HIEBERT-MENE- SES, 1995, p. 371-372). “Contextualizar” significa se “adaptar-se”, encarnar e transferir a mensagem, as palavras, o exemplo e a obra de Cristo, de modo a representá-lo como Ele é: a Palavra de Deus revelada aos homens e mulheres.
Contextualizar o Evangelho significa viver a vida de Cristo em nossa vida; receber a vida e a Palavra escrita e comunicá-la aos outros de maneira que possam entender. Mesmo aqueles que não sabem ler ou escrever podem compreender o Evangelho se lhes for comunicado de forma adequada, ou melhor, se o Evangelho for vivido de forma que representa o Deus do Evangelho.
Contextualização é a comunicação ou a tradução do Evangelho em formas verbais que são entendidas pelas pessoas em sua própria cultura distinta e situações específicas (NICHOLLS apud HESSELGRAVE; ROMMEN, 1989, p. 33). O conteúdo do Evangelho também está sendo praticado e vivido de maneira concreta e real. Contextualização pode também ser um processo com três elementos distintos: revelação, interpretação e aplicação, através da qual não haveria continuidade de sentido (YODER apud ROMMEN, 1989, p. 201). Contextualização também pode ser definida como o processo em que a mensagem da Palavra de Deus se relaciona com o contexto cultural em que é proclamada; isto significa que a Palavra de Deus deve ser levada às pessoas onde elas vivem, à cultura em que vivem, de tal maneira que possam identificar-se com a ela e expressar-se com a Palavra em sua própria forma cultural (LAUERDORF, 1984, p. 2).2 aceita o que é bom na cultura e também condena e rejeita o que é mau em cada cultura (HIEBERT, 1994, p. 64, 75-92).
1 Para um estudo mais detalhado da contextualização a partir de uma perspectiva adventista, consulte Journal of Adventist Mission Studies (v. 1, no 2, 2005) do Departamento de Missão Mundial da Universidade Andrews. Essa edição foi inteiramente dedicada a esse assunto.
2 Para que ministérios de assistência e desenvolvimento sejam entendidos como missão integral, a igre- ja deve se engajar na contextualização global com algumas características essenciais e fundamentais. Moreau (2006, p. 325-327) discutiu sete destas características afirmando que: 1) A contextualização abrangente está preocupada com o conjunto da fé cristã. 2) É tanto proposicional e existencial; como tal, deve envolver tanto as verdades eternas sobre a nossa fé, quanto a forma como as verdades devem ser vividas. 3) É baseada na Bíblia. 4) É interdisciplinar na sua abordagem à cultura. 5) É dinâmico. 6) É ciente do impacto da pecaminosidade humana no processo. 7) É um processo de duas vias, em que todos os lados contribuem.
O processo de uma contextualização abrangente do Evangelho deve ser visto e aplicado em vários aspectos do ministério da igreja e missão.3 Como exemplos, algumas das áreas de missão onde contextualização pode ser aplica- da são: a tradução da Bíblia (e toda a literatura cristã); pregação do Evangelho de forma que seja compreensível para os ouvintes; estrutura administrativa e formas de governo eclesiástico; disciplina de novos crentes; liturgia e adoração, batismo, casamentos e comunhão; música e hinos; comunicação, filosofia e métodos de educação; cuidados de saúde, ministérios de assistência e caridade com os pobres e necessitados, e programas de desenvolvimento.
Pode-se afirmar que o objetivo de uma contextualização abrangente “é tornar a fé cristã como um todo — não só a mensagem, mas também os meios de viver a nossa fé no contexto local — compreensível” (MOREAU, 2006, p. 325). A vida do missionário deve ser contextualizada; e assim deve ser a sua mensagem, bem como a abordagem e metodologia do testemunho. Além disso, aspectos da vida cristã, tais como a adoração, devem ser contextualizados. Até mais importante é a necessidade de contextua- lizar muitos dos aspectos da velha cultura.
Exemplos
Cristo é o melhor exemplo de contextualização do Evangelho eterno. Ele é o Filho de Deus encarnado. Ele viveu e morreu para nos dar um exemplo a ser seguido, e sua Igreja é chamada a seguir os seus passos. Mais urgentemente, o mundo precisa do que tem sido necessário nos últimos 2.000 anos: uma revelação real de Cristo (WHITE, 1905, p. 143). Como pode então Cristo ser revelado para o mundo? Quais são as formas e os métodos a serem usados? O que significa, atualmente, contextualizar o Evangelho às pessoas, culturas e lugares onde vivem? Neste contexto, Ellen G. White escreveu extensamente sobre os métodos e princípios que devem ser empregados como tentativa de contextualizar e viver o evangelho de Cristo:
3 Qualquer adventista envolvido em missão ou ministério integral que requer contextualização séria do Evangelho deve consultar os princípios e diretrizes estabelecidos pela Igreja Adventista do Sétimo Dia. Eles podem ser encontrados no site oficial da Igreja Adventista (disponível em: http://bit. ly/2975B2kl), sob o título “Guideliness for Engaging in Global Mission”. Esse documento tem cinco partes que descrevem os seguintes temas: 1) o uso da Bíblia na missão; 2) estruturas organizacionais transitórias; 3) Crenças Fundamentais e preparo para o batismo; 4) formas de culto; e 5) contextualização e sincretismo. Este último ponto é o mais relevante na discussão, compreensão e prática de um ministério contextualizado. Outro documento importante e mais atualizado é “Roadpmap for Mission”, e também pode ser encontrado no site oficial da igreja (disponível em: http://bit.ly/29fAMvN).
Unicamente o método de Cristo trará verdadeiro êxito no aproximar-se do povo. O Salvador misturava-se com os homens como uma pessoa que lhes desejava o bem. Manifestava simpatia por eles, ministrava-lhes às necessidades e granjeava-lhes a confiança. Ordenava então: “Segue-Me” (Jo 21:19).
É necessário pôr-se em íntimo contato com o povo mediante esforço pessoal. Se se empregasse menos tempo a pregar sermões, e mais fosse dedicado a serviço pessoal, maiores seriam os resultados que se veriam. Os pobres devem ser socorridos, cuidados os doentes, os aflitos e os que sofreram perdas confortados, instruídos os ignorantes e os inexperientes aconselhados. Cumpre-nos chorar com os que choram, e alegrar-nos com os que se alegram. Aliado ao poder de persuasão, ao poder da oração e ao poder do amor de Deus, esta obra jamais ficará sem frutos (WHITE, 1905, p. 143-144).
A citação de Ellen G. White é uma definição clara sobre a forma como o Evangelho deve ser contextualizado, especialmente na área das obras sociais da igreja. É importante compreender que a verdadeira contextualização do Evangelho não se limita à pregação ou tradução da Palavra, sua essência diz respeito à vivência e à prática do Evangelho — “Cristo em vós, a esperança da glória” (Cl 1:27). Isto é o que Paulo queria dizer quando fez referência ao “mistério da encarnação”. A encarnação foi a forma de Deus de se contextualizar a nós como indivíduos, a nossa condição, e para o nosso mundo decaído.
Outro exemplo de uma contextualização pessoal é de Mazhar Mallouhi, nascido em uma casa muçulmana, na Síria, um escritor que já publicou mais de uma dúzia de livros. Ele também é um cristão missionário aos muçulmanos do Oriente Médio, vivendo naquele local para compartilhar o Evangelho e para a paz de Cristo ao mundo muçulmano, os árabes, e também aos cristãos. Em um artigo escrito por Paul-Gordon Chandler (2003, p. 54-59), Mallouhi é descrita como “o vivo legado cristão de Gandhi no mundo muçulmano”. A experiência de conversão de Mallouhi é única e extraordinária ao mesmo tempo. Para ele, o cristianismo era uma ferramenta de opressão dos colonizadores, um “faroeste religioso”, que prosseguiu as suas cruzadas medievais contra os povos árabes. Os cristãos chamam Cristo de “Príncipe da Paz”, mas ao mesmo tempo apoiavam a guerra. A coisa mais bela do Evangelho, a cruz, foi usada como uma arma nas mãos daqueles que participaram das cruzadas contra nós; e a cruz, o meio pelo qual Deus abraça a humanidade, é transformada em uma espada (CHANDLER, 2003, p. 55).
O exemplo e a vida de Mahatma Gandhi (1869-1948) influenciou grande- mente Mallouhi a considerar o cristianismo. Gandhi, embora nunca se tornasse cristão, considerou Cristo como seu exemplo e muitas vezes declarou o seguinte para missionários cristãos na Índia: “Não fale sobre o cristianismo, apenas viva como um verdadeiro cristão e as pessoas virão para ver a fonte de seu poder.” Gandhi foi capaz de fazer o que os missionários não foram capazes de fazer em 50 anos — os olhos da Índia se viraram para a cruz. O testemunha involuntário de Gandhi a respeito de Cristo para os hindus e os muçulmanos da Índia atingiram e tocaram o coração de Mazhar Mallouhi. Ele viu os ensinamentos de Jesus demonstrados e vividos na vida de Gandhi (CHANDLER, 2003, p. 54).
Assim como Gandhi, encarnou e incorporou em sua própria vida os princípios do evangelho de Cristo. Mazhar Mallouhi, através do exemplo de Gandhi, foi atraído para Cristo através de suas palavras: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e Eu vos aliviarei” (Mt 11:28).
Como escritor, Mallouhi apresenta a Bíblia de uma forma que é cultural- mente aceitável no Oriente Médio. Não muito tempo atrás, em uma grande convenção de livros muçulmanos, em um país Africano do Norte, um livro escrito por Mallouhi, intitulado An Eastern Reading of the Gospel of Luke (Uma leitura oriental do evangelho de Lucas) ajudou a Bíblia a ganhar acesso e tornar-se mais aceita pelo povo muçulmano. Foi o livro que mais vendeu nessa convenção. Esse livro retratava Jesus como alguém que tem raízes no Oriente Médio, e como alguém que se identifica e se relaciona com os muçulmanos do Oriente Médio. Neste contexto, e na realidade, o cristianismo não é uma religião do Oeste; é sobretudo uma religião do Oriente (CHANDLER, 2003, p. 58).
O sonho de Mazhar Mallouhi é encontrar um lar para a Palavra de Deus nos corações dos povos muçulmanos do mundo, de modo que muitos vão entender o Evangelho e encontrar a verdade e reconciliação duradoura no Príncipe da Paz do Oriente Médio. Esse é um exemplo de verdadeira contextualização, que toma como base o exemplo de Jesus e os princípios bíblicos. Jesus veio para representar e revelar Deus a um mun- do caído. Ele veio personificar a divindade de Deus; viver o Evangelho, já que Ele próprio é o Evangelho. Ele fez isso enquanto andava pelas estradas da Galileia, ao ajudar aqueles em necessidade, enquanto chamava pecado- res ao arrependimento. Ele continua o seu trabalho através de seus fiéis seguidores quando também decidiram viver e praticar totalmente e inteiramente seu Evangelho integral.
Ministérios integrais a partir de perspectivas bíblica
A Bíblia fornece princípios e instruções sobre o nosso dever e cuidado para com as viúvas, órfãos, estrangeiros, pobres e necessitados, doentes, deficientes e todos os oprimidos pelo diabo. Essas instruções foram dadas a nós por um Deus que ama e cuida de nós. Várias destas instruções encontram-se nas passagens do AT (ver Êx 22:21-25; 23:9-11; Lv 19:9-15; 25:25-28; Dt 10:17-19;14:28-29; 15:7-11; 24:12-21; 26:12-13; 27:19; Jó 29:12-17; 31:13-23; Sl 68:5; 82:2-4;112:4-9; 146: 9; Pv 13:23; 14:31; 19:7; 22:22-23; 23:10-11; 29:7; 31:10; Is 1:17, 23;10:1-2; 58:6- 10; Jr 5:27-28; 7:5-7; 22:3; 49:11; Ez 18:7; 16:49; Dn 4:27; Os 14:3;
Zc 7:9-10; Ml 3:5). Os profetas eram francos em relação às leis e regulamentos sobre o auxílio e bem-estar social no AT. Muitas vezes, uma pergunta é feita: como podem os pobres, sem-teto e desempregados ser ajudados a fim de assegurar as bênçãos da providência de Deus e viver a vida que Ele pretendia para a humanidade? Observe a seguinte declaração:
Se os homens dessem mais atenção aos ensinos da Palavra de Deus, encontrariam uma solução a esses problemas que os desconcertam. Muito se poderia aprender do Antigo Testamento quanto à questão do trabalho e do auxílio aos pobres. No plano de Deus para Israel, toda família tinha um lar na Terra, e terreno suficiente para plantações. Assim eram proporcionados tanto os meios como o incentivo para uma vida útil, industriosa e independente. E nenhuma medida humana já excedeu a esse plano. A pobreza e a miséria que hoje existem se devem, em grande parte, ao fato de o mundo ter se afastado dele (WHITE, 1905, p. 143-144).
Os princípios, lições e instruções da Bíblia ajudam as pessoas a compreender a intenção de Deus em relação aos mais necessitados. Deus quer que todos estejam em conexão com a sua Palavra de modo que cada um possa ser seu instrumento de misericórdia e amor para aqueles que estão sofrendo. “É o desígnio de Deus que o rico e o pobre estejam intimamente ligados pelos laços da simpatia e da assistência mútua” (WHITE, 1905, p. 193). Esta união irá provar ser uma bênção para ambos os grupos. Vai ajudar tanto os pobres quanto os ricos no entendimento do plano de salvação de Deus e das verdades espirituais que podem ser reveladas por uma vida de benevolência e, assim, entendidas no meio de angústia e sofrimento.
A verdadeira caridade ajuda os homens a ajudarem a si mesmos. Se alguém vem à nossa porta e pede alimento, não o devemos mandar embora com fome; sua pobreza pode ser o resultado de um infortúnio. Mas a verdadeira beneficência significa mais que simples dádivas. Importa em um real interesse no bem-estar dos outros. Cumpre-nos buscar compreender as necessidades dos pobres e dos aflitos, e conceder-lhes o auxílio que mais benefício lhes proporcione. Dedicar pensamentos e tempo e esforço pessoal, custa muitíssimo mais que dar meramente dinheiro. Mas é a verdadeira caridade (WHITE, 1905, p. 195).
É somente por seu amor e serviço para com os seus filhos que as pessoas carentes podem provar a autenticidade de seu amor por Deus (WHITE, 1905,
- 205). O verdadeiro serviço provém um verdadeiro amor pelo Salvador como demonstrado para com aqueles que Ele veio para salvar e restaurar. Jesus dá um exemplo extraordinário, ao contar a história do Bom Samaritano (veja Lc 10:25- 37). Neste incidente onde o Evangelho é contextualizado através da pessoa do Bom Samaritano, Jesus trouxe uma nova interpretação do que Deus tinha ordenado na antiga aliança, mas que os israelitas do tempo de Jesus haviam esquecido.
O NT também fornece muitos exemplos que ajudam as pessoas a entender como os ministérios integrais devem ser parte da vida e da missão, tanto do crente quanto da igreja, que é o corpo de Cristo. O tratamento amável e gentil de Jesus às mulheres também ajuda as pessoas a compreender melhor a forma de contextua- lizar o Evangelho; um exemplo disto é a história da mulher samaritana (Jo 4:1-26); outro é como Jesus reinterpretou ou contextualizou a mensagem de Deus, como é o caso da mulher apanhada em adultério (Jo 8:1-11).4
4 Outros exemplos de como o Evangelho de Cristo tocou as mulheres são as seguintes: a mulher cananeia ou siro-fenícia (Mt 15:21-28; Mc 7:24-30); a mãe de Jesus (Jo 19:25-27); Jesus encorajou Marta e Maria (Jo 11:17-37); ressuscitou o filho de uma viúva (Lc 7:11-17); foi ungido por uma mulher pecadora e perdoou pecados (Jo 12:1-11; Mt 26:6-13; Mc 14:3-9; Lc 7:36-50); curou e dialogou com uma mulher doente (Lc 8:43-48; Mt 9:20-22; Mc 5:25-34); mulheres foram curadas de espíritos malignos e doenças (Lc 8:1-3); Jesus curou uma mulher aleijada (Lc 13:10-13); notou a viúva dando sua oferta (Mc 12:41-44; 21:1-4); apareceu a Maria (Jo 20:10-18).
Todo o ministério de Jesus — ensinando, pregando e curando — demonstrou a sua missão de salvar e restaurar, curar e perdoar. Sua ações confirmaram seus ensinamentos
Seus milagres testificavam da veracidade de suas palavras, de que não veio a destruir, mas a salvar. Aonde quer que fosse, as novas de sua misericórdia o precediam. Por onde havia passado, os que haviam sido alvo de sua compaixão se regozijavam na saúde, e experimentavam as forças recém-adquiridas. Multidões ajuntavam-se em torno deles para ouvir de seus lábios as obras que o Senhor realizara. Sua voz havia sido o primeiro som ouvido por muitos, seu nome o primeiro proferido, seu rosto o primeiro que contemplaram. […]
O Salvador tornava cada ato de cura uma ocasião para implantar princípios divinos na mente e na alma. Esse era o desígnio de sua obra. Comunicava bênçãos terrestres, para que pudesse inclinar o coração dos homens ao recebimento do evangelho de sua graça. Cristo poderia ter ocupado o mais elevado lugar entre os mestres da nação judaica, mas preferiu levar o evangelho aos pobres. Ia de lugar a lugar, para que os que se achavam nos caminhos e atalhos pudessem ouvir as palavras da verdade. […] Assim ia de cidade em cidade, de vila em vila, pregando o evangelho e curando os enfermos — o Rei da glória na humilde veste humana (WHITE, 1905, p. 19-22).
Como notado, o ministério de Jesus foi totalmente dedicado à salvação e resgate de seres humanos à sua integralidade original. Ele lhes pregou o Evangelho, curou sua doença, perdoou seus pecados, e os restaurou a uma vida que era completa — reconciliou todos com Deus através de si mesmo.
Ellen G. White comenta que “o Salvador assistia tanto à alma como ao corpo. O evangelho por Ele pregado era uma mensagem de vida espiritual e de restauração física” (WHITE, 1905, p. 111). Além disso, era “dando a vida pela vida dos homens” que Ele “restauraria na humanidade a imagem de Deus. E havia de nos levantar do pó, reformar o caráter segundo o modelo de seu próprio caráter, e torná-lo belo com sua própria glória” (WHITE, 1905, p. 504).
Este é, sem qualquer dúvida, aquilo que todos podem se referir como o Evangelho integral de Jesus Cristo; um Evangelho que é capaz de curar e salvar, proteger e restaurar — transformando seres humanos em herdeiros do reino de Deus por restaurar neles a imagem de Deus. Esse é o trabalho que deve ser feito através do poder do Espírito de Deus, a fim de que muitos pobres, doentes e necessitados possam receber a graça deste Evangelho integral de Cristo e ser transformados em sua semelhança.
Ao ajudar os pobres, as pessoas precisam ter cuidado para não torná-los dependentes. O apóstolo Paulo faz uma referência que se aproxima do desenvolvimento cristão, como pode ser entendido, no contexto atual. Ele escreveu: “e a diligenciardes por viver tranquilamente, cuidar do que é vosso e trabalhar com as próprias mãos, como vos ordenamos; de modo que vos porteis com dignidade para com os de fora e de nada venhais a precisar” (1Ts 4:11-12). É claro que os crentes não devem ser um fardo para os outros — a dependência é contra os princípios cristãos. Ao viverem uma vida tranquila, trabalhando com as próprias mãos, e não interferindo nos assuntos dos outros, os crentes possui- riam dignidade, seriam autossuficientes e se tornariam cidadãos respeitados de suas comunidades. Esse foi de fato o evangelho, demonstrado concretamente.
Desenvolvimento integral
A transformação holística é a finalidade última do desenvolvimento cristão. Mas para que essa transformação ocorra, o poder divino e a vontade humana devem cooperar. Jesus mostrou às pessoas o caminho amando e identificando-se com elas até a morte. Sua missão era trazer restauração completa para homens e mulheres. Ele “veio trazer-lhes saúde, paz e perfeição de caráter. […] Dele emanava uma corrente de poder restaurador, ficando os homens física, mental e moralmente sãos” (WHITE, 1942, p. 17). Desenvolvimento real é mais do que apenas mudanças no comportamento, tradições, ou visão de mundo; é uma transformação de toda a pessoa, que afeta a comunidade inteira. É uma transformação tanto de pobres quanto de não pobres. Todos precisam ser transformados e salvos pela graça redentora de Deus.
O ministério efetivo para toda a pessoa é um processo pelo qual a visão de mundo e os valores são transformados em uma forma agradável a Cristo e moldados pela sua Palavra. Quando isso acontece, as pessoas cada vez mais cumprem o seu potencial dado por Deus e demonstram justiça na motivação e comporta- mento. […] Tal transformação radical e duradoura ocorre quando o Espírito Santo muda as pessoas e as torna semelhantes a Jesus. Então, o desenvolvimento [que é integral] já começou (STEWARD, 1982, p. 24).
Em outras palavras, e parafraseando as palavras do apóstolo Paulo em 1 Coríntios 13, pode-se afirmar que, se não há amor, não há desenvolvimento. Posso fazer muitas coisas, até mesmo coisas impossíveis, mas se eu não amar, não sou nada, nada disso me aproveitaria.
O amor é paciente, é benigno; o amor não arde em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, não se conduz inconvenientemente, não procura os seus interesses, não se exaspera, não se ressente do mal; não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor jamais acaba; mas, havendo profecias, desaparecerão; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, passará […]. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; porém o maior destes é o amor (1Co 13:4-8, 13).
A essência do desenvolvimento transformacional e integral é o amor, e a fonte ou origem de amor genuíno e altruísta é Deus. O desenvolvimento, então, vem por meio do estabelecimento do Reino de Deus à medida que os membros do corpo de Cristo, que formam a sua igreja, se reúnem para adorá-lo, reconhecendo-o como Criador e Salvador. Isso acontece por meio da busca de paz e justiça. O perdão é dado e recebido, pessoas são restauradas (tornadas completas), e Deus é adorado em Espírito e em verdade. O desenvolvimento integral vem de Deus, por meio do Filho e do Espírito. É dado como um presente e, quando aceito individualmente e compartilhado pelos membros do corpo de Cristo, transforma toda a pessoa, toda a comunidade. Os resultados desse desenvolvimento integral são os frutos do Espírito, dos quais o mais importante é o amor.
O Evangelho como missão integral:
desafios e oportunidades
A contextualização do Evangelho é sempre um desafio, com riscos e oportunidades. Alguns dos possíveis desafios envolvidos neste processo serão discutidos brevemente.
Desafios
Em primeiro lugar, existe o risco de diminuir o Evangelho a um nível tão idêntico a certa cultura que ele não tem o poder de transformar nem a cultura
nem as pessoas a que se destina; o Evangelho se torna um prisioneiro da cultura. Uma das razões é o excesso de contextualização, ou contextualização acrítica.
Em segundo lugar, e de forma semelhante, a contextualização dos ministérios integrais representa outro risco grave na medida em que esses ministérios se tornam um fim em si mesmos, ou se tornam o Evangelho em si mesmo. Um exemplo seria o da igreja se tornando uma grande agência humanitária. Em outras palavras, serviços comunitários e ministérios assistenciais, a ADRA, hospitais, ou nossas escolas e universidades, por sua vez, tornam-se igrejas em si mesmas ou o próprio Evangelho. Para esclarecer esse desafio, alguns peque- nos exemplos da história e da Bíblia serão fornecidas abaixo.
Rei Salomão — O rei mais sábio que já viveu tentou contextualizar o plano de
Deus de acordo com o que ele pensava que era correto, de acordo com o seu próprio raciocínio. Ele permitiu que o culto aos deuses pagãos fossem realizados dentro das paredes de seu próprio palácio e em sua nação — o próprio território de Israel. O resultado era previsível e terrível: a idolatria pagã penetrou a nação escolhida e a tornou parte da própria cultura do povo eleito de Deus.
As tradições dos fariseus — As instruções de Deus foram rejeitadas,
os seus conselhos esquecidos, e estes foram substituídos por decretos humanos: a vontade humana no lugar da vontade de Deus. Esse é um tipo de contextualização onde a vontade de Deus e suas instruções foram substituídas pela vontade humana e suas tradições.
Da mesma forma, corremos o mesmo risco na Igreja Adventista atual, em nosso sistema educativo, no sistema médico, e em qualquer sistema institucionalizado da igreja. Se não tivermos cuidado, podemos acabar aceitando currículos governamentais, práticas médicas, filosofias secularizadas, e assim por diante, somando apenas a nossas próprias tradições humanas, em vez da revelação e instruções de Deus.
As tradições católicas romanas — Essa contextualização excessiva aconteceu com a Igreja Católica, que substituiu alguns princípios e mandamentos de Deus por suas próprias tradições. Em muitas ocasiões, em vez de pregar o Evangelho de Cristo, a Igreja Romana acabou tornando-se um arauto da cultura e das tradições humanas, e em vez levar o Evangelho, tornou-se opressiva, forçando as pessoas a aceitar a sua própria cultura e tradições como o próprio Evangelho.
Em relação ao segundo aspecto ou desafio de ministérios integrais girando em torno de uma agência humanitária ou uma grande empresa pastoral social, veja os seguintes exemplos: A caridade como um meio de salvação — A prática da caridade substitui a necessidade de um Salvador — isso é salvação pelas obras. Os pobres e necessitados tornam-se instrumentos de salvação para aqueles que são ricos, e estes, por sua vez, ganham a sua salvação através da partilha com os pobres de sua abundância. Para os pobres, por outro lado, a prática de uma vida humilde e privada e a própria condição de pobreza são considerados meritórios para a salvação. Não há necessidade de Deus, já que a pobreza é um meio de salvação. Dar ou receber a esmola torna-se mais importante que compartilhar, pregar, aceitar, ou viver e praticar o Evangelho.
O Evangelho social — Muitos ministérios sociais começam com o nobre propósito de partilhar e testemunhar do Evangelho, mas à medida que o tempo passa, o testemunho do Evangelho diminui e o compartilhamento do amor de Deus cessa. Pouca ou nenhuma referência é feita ao Evangelho que transforma, restaura, cura, redime e salva. Muito se fala sobre o fato de que a sociedade está cada vez melhor, que programas sociais podem transformar e melhorar sociedades e comunidades, e que, como resultado, o Reino de Deus será estabelecido aqui na Terra, porque as pessoas estão melhorando, progredindo no sentido de alcançar a santidade.
Saúde sem cura e tratamento sem o Evangelho — O caso do Sana- tório de Battle Creek e do Dr. John H. Kellogg é um exemplo. Parecia que o restabelecimento da saúde tornou-se um fim em si mesmo. O lado espiritual foi negligenciado, e o Evangelho integral deixou de ser pratica- do como instruído por Deus. O Dr. Kellogg focalizou continuamente em novas descobertas médicas e novas técnicas de tratamento, esquecendo-se de também ajudar os doentes a olhar para Jesus como o grande Médico. Sua compreensão panteísta de Deus e da natureza o levou a uma contextualização do Evangelho que provou ser desastrosa para ele e para a igreja.
Programas de saúde, sociais e de desenvolvimento que estão fora do
Evangelho e fora do corpo de Cristo — Hospitais adventistas do sétimo dia e instituições de ensino, bem como a ADRA, estão em grande risco de perder de vista sua verdadeira finalidade e função, que é tanto curar os doentes quanto transformar as comunidades, permitindo-lhes ter vi- das significativas e abundantes. O risco é que esses ministérios proporcionem a cura física, mudanças sociais e comunidades desenvolvidas, mas falta a verdadeira transformação que ocorre quando o evangelho é compartilhado e vivido em palavras e atos. Oportunidades
A contextualização abrangente e a crítica do Evangelho renderá muitos benefícios e oportunidades concretas. Como o Evangelho e o cristianismo têm necessidade de ser constantemente traduzidos, adaptados e transferidos para outras culturas e línguas, desde o início, nós também temos que nos assegurar de que os nossos ministérios holísticos sejam relevantes e apropria- dos para a cultura e as pessoas que estão servindo. Isso é realizado tentando-se contextualizar a vida e a mensagem, bem como as abordagens e os métodos utilizados enquanto apresentamos ou vivemos o Evangelho de forma integral em um determinado contexto.
Um dos desafios que a Igreja possui, que ao mesmo tempo torna-se uma oportunidade, é ajustar os seus métodos e sua maneira de fazer missão, a fim de enfrentar e lidar com as mudanças sociais em curso neste mundo. Ela deve se esforçar continuamente para expressar a mensagem eterna de uma forma que é relevante para a cultura emergente e para as necessidades atuais de um mundo agonizante sem alterar seus princípios (PUJIC, 2003, p. 21). Uma contextualização equilibrada e séria do Evangelho vai ajudar a igreja no cumprimento da sua missão. Alguns exemplos de possibilidades reais são as seguintes:
Tradução e produção de literatura cristã — A igreja tem uma oportunidade quando traduz, produz e distribui literatura e recursos cristãos em vários idiomas para os mais diversos grupos de pessoas do mundo. A tradução e distribuição de Bíblias e livros que transmitem a mensagem de Deus cumprem esse propósito e exemplificam o que a contextualização adequada significa na prática.
Liderança cristã servidora — Quando os líderes da igreja seguem o exemplo de Cristo em um mundo onde os valores bíblicos não são populares, eles estão cumprindo o plano tencionado de Deus para eles. Eles avançam contra a cultura dominante e contextualizam o Evangelho integral de Cristo exemplificando em sua própria vida o caráter amoroso do Salvador.
O Evangelho integral — A igreja deve ensinar, praticar e viver o Evangelho em sua inteireza — em palavras e ações. Como tal, os cristãos adventistas têm uma oportunidade única e grandiosa de compartilhar a verdade presente no contexto atual. Essa verdade presente deve ser continuamente adaptada (contextualizada) enquanto testemunhamos, ensinando e curando, de modo que o Evangelho integral de Cristo seja compreendido, aceito e praticado por aqueles que estamos tentando alcançar. As três mensagens angélicas de Apocalipse 14 são parte singular da mensagem do Evangelho e devem ser compartilhadas com todas as nações, línguas e povos deste mundo. Por meio do ensino, pregação e cura, as verdades do Evangelho como são em Jesus serão transmitidas para aqueles que estão em necessidade de redenção e de um Salvador. Todos os membros, departamentos, instituições, ministérios e agências da igreja são chamados a participar na partilha do Evangelho integral de Jesus.
O ministério integral da ADRA — À medida que os servidores da ADRA
introduzem um novo território ou lugar, é imperativo que eles tirem as sandálias dos pés, porque o lugar que estão pisando pode ser terra santa. Creio que Deus está trabalhando na vida de muitas pessoas antes mesmo que indivíduos e agências ini- ciem suas atividades humanitárias e de testemunho em determinado lugar.
Deus também envia seus servos como servidores de assistência e desenvolvimento para lugares onde ninguém ouviu o Evangelho, de modo que o seu caráter amoroso possa ser vivido por meio desses servidores. Muitas vezes, essa é a forma como os ministérios integrais da ADRA podem contextualizar o Evangelho à medida que ele é pregado mediante palavras, atos e programas de desenvolvimento — um Evangelho que é exemplificado em princípios, na prática e nas vidas daqueles que servem.
Considerações finais
O testemunho silencioso e intencional dos que estão dispostos a ajudar os necessitados, mesmo em países distantes onde o Evangelho não pode ser pregado abertamente, é uma maneira distinta e eficaz de contextualizar o Evangelho, e em tempo que produzirá resultados positivos. Devemos seguir o exemplo de Jesus Cristo que “ia de cidade em cidade, de vila em vila, pregando o Evangelho e curando os enfermos — o Rei da glória na humilde veste humana” (WHITE, 1942, p. 22). Ele não só contextualizou o Evangelho em forma e significado que pode ser compreendido por todos, mas era o próprio Evangelho — a Palavra de vida.
Servidores do desenvolvimento não devem se envergonhar do Evangelho, porque ele é o poder de Deus para a salvação e transformação dos que creem (Rm 1:16). Esse poder vai acompanhar todos os envolvidos em ministérios integrais, e como Cristo, que transmitia a vida e a salvação enquanto ministrava a todos — cura, ensino e partilhar as boas-novas —, eles também vão ser veículos da graça de Deus. No final, todos precisamos entender que compartilhar as boas-novas do Evangelho e curar o corpo humano é uma e a mesma atividade, que é levada adiante por indivíduos através do poder do Espírito.
O Evangelho torna-se uma missão integral quando a nossa vida, mensagem e métodos são contextualizadas às realidades e necessidades daqueles a quem ministramos para aqueles que sofrem. Como obreiros da igreja, dedicamo-nos à assistência humanitária, às atividades educativas e de desenvolvimento, à administração, à pregação, ou à missão médica; somos as mãos e os pés de um corpo — o Corpo de Cristo. Assim, os ministérios integrais devem ser realizados em conjunto e de forma integrada enquanto nos esforçamos para viver a boa-nova de Deus na sabedoria e força do Espírito e no amor e graça de Jesus Cristo. Então, qual é o nosso papel na missão integral de Deus? Que Deus nos abençoe à medida que continuamos a buscar melhores maneiras de servi-lo, traduzindo, contextualizando e adaptando o Evangelho em palavras e ações em quem somos, no que fazemos e onde quer que estejamos.