2 de setembro de 2020

Ainda podemos ser considerados o povo da Bíblia

Ainda podemos ser considerados o povo da Bíblia

Ainda podemos ser considerados o povo da Bíblia?

A iminente crise entre a verdade e o erro requer intimidade com a Bíblia

ALBERTO R. TIMM

 

Estudos sociológicos sobre a religião têm demonstrado que os movimentos religiosos normalmente surgem com o propósito de reformar a cultura na qual nascem. Mas no segundo século de sua existência, depois do falecimento dos pioneiros e daqueles que os conheceram, tendem a perder a sua identidade e ser reabsorvidos pela mesma cultura que inicialmente pretendiam reformar.

Hoje, a Igreja Adventista do Sétimo Dia enfrenta os desafios que são próprios do segundo século de sua existência. E, além disso, precisa viver em um mundo no qual os apelos ao ecumenismo e as tendências pluralistas estão fazendo com que muitas denominações cristãs sejam impedidas de falar de suas doutrinas distintivas. Sob as fortes correntes da globalização ecumênica, tais denominações terminam perdendo quase que completamente a sua própria identidade.

Isso nos leva a perguntar: a Igreja Adventista do Sétimo Dia não estaria também correndo perigo em sua identidade? Podemos detectar evidências disso em nosso meio? E se as detectarmos, o que deveríamos fazer para reduzir suas causas e seus efeitos? Este artigo considera brevemente como os adventistas viam sua própria identidade até cerca de 1980, como ela começou e o que deveríamos fazer para preservá-la.

Período da Ênfase Bíblico-Doutrina (1844-1980)

Durante muitos anos os adventistas foram conhecidos como “o povo da Bíblia”. Seus fundadores amavam realmente a verdade e eram profundos estudiosos da Palavra de Deus. Guilherme Miller, por exemplo, iniciou em 1816 um período de estudos sequencial da Bíblia, começando com Gênesis 1:1 e continuou somente depois de haver compreendido satisfatoriamente cada texto bíblico.

Descrevendo o início do movimento adventista guardador do sábado, Ellen White escreveu: “Reunia-me com eles [Tiago White, José Bates, Pai Pierce, Hiran Edson e outros], e estudávamos e orávamos fervorosamente. Muitas vezes ficávamos reunidos até alta noite, e às vezes a noite toda, pedindo luz e estudando a Palavra. Repetidas vezes esses irmãos se reuniram para estudar a Bíblia, a fim de que conhecessem seu sentido e estivessem preparados para ensiná-la com poder” (Mensagens Escolhidas, v. 1, p. 206).

John N. Andrews afirmou em 1849, em um de seus primeiros contatos com Tiago e Ellen White, que “trocaria mil erros por uma verdade”. J. O. Corliss ouviu em certa ocasião que alguém perguntou a Andrews o quanto ele havia decorado da Bíblia. A resposta de Andrews foi: “Não me atreveria a afirmar que poderia repetir o Antigo Testamento, mas tenho a certeza de que se perdessem o Novo Testamento, eu poderia reproduzir palavra por palavra”. Além disso, ele foi um dos mais importantes investigadores e expositores das doutrinas bíblicas durante a etapa de formação da mensagem adventista do sétimo dia.

Estes são alguns exemplos do amor que os pioneiros do movimento adventista mostravam pelo conhecimento doutrinário das Escrituras e pela compreensão dos textos bíblicos. Esse mesmo amor continuou sendo uma das características distintivas dos adventistas pelos menos até o final da década de 1970. Isto se refletia tanto no conteúdo dos sermões pregados e dos estudos bíblicos dados, como nos programas dos jovens.

As novas gerações de conversos entravam na Igreja com tal convicção da verdade que dificilmente abandonavam a fé. Os adventistas eram respeitados e até temidos pelos demais evangélicos por seu profundo conhecimento bíblico. Os próprios adventistas chegavam a vangloriar-se de que uma das evidências de que possuíam a verdade era o fato de que, se alguns de seus membros abandoassem a igreja, não se uniriam a outra denominação.

Durante este período havia um costume sagrado de fazer o “Ano bíblico”. Graças a essa boa prática vários adventistas obtiveram os primeiros prêmios em concursos bíblicos nacionais e internacionais. Muitos adventistas se destacaram pela grande quantidade de passagens bíblicas decoradas e por seu profundo entendimento dos ensinamentos bíblicos.

Período da Ênfase Bíblico-Relacional (1981-    )

Se até o final da década de 1970 os adventistas se caracterizaram pelo seu conhecimento bíblico-doutrinário, a partir de 1980 essa característica começou a ser substituída paulatinamente por uma nova ênfase bíblico-relacional. Em outras palavras, o interesse pelo conhecimento racional dos ensinamentos bíblicos terminou sendo substituído pela leitura existencialista da Bíblia, como uma forma de alimentar a relação com Cristo.

Fundamental para essa transição, na América do Sul, foi a publicação de algumas obras do pastor Morris L. Venden, como por exemplo, Fé que Opera (Meditação Matinal de 1981), Como Conhecer a Deus (1987), 95 Teses Sobre Justificação pela Fé (1988). Mais influentes ainda foram as pregações e as publicações do pastor Alejandro Bullón, entre as quais se destacam alguns de seus primeiros livros, como por exemplo, Jesus, Tu És a Minha Vida (1983) e Conhecer Jesus É Tudo (em português 1988, em espanhol 1996), estas obras contribuíram significativamente para que muitas pessoas, que viviam uma religião de mero formalismo doutrinário, tivessem um encontro genuíno com Cristo.

A ênfase relacional era necessária e surgiu em um momento oportuno para a igreja. Entretanto, como acontece em quase todos os processos de transição, o pêndulo espiritual de muitos adventistas falhou em se deter no ponto de equilíbrio e acabou passando do extremo do formalismo doutrinário para o outro extremo, do existencialismo subjetivo. Embriagados por uma relação mística com Cristo, alguns adotaram uma postura anti-doutrinária que considera as doutrinas básicas da fé adventista como mero vestígio de uma religião legalista obsoleta.

A superficialidade atual no conhecimento das Escrituras contribuiu mais do que qualquer coisa para a perda da consciência profético-doutrinal da denominação. O estudo objetivo (doutrinário) da Bíblia foi substituído por uma leitura pietista (existencialista), destinada quase exclusivamente para alimentar uma relação mística e subjetiva com Cristo. Como consequência, os sermões pregados e muitas de nossas igrejas se tornaram mais superficiais, substituindo em grande medida o conteúdo doutrinário da Bíblia pelas experiências pessoais do próprio pregador.

A indiferença existencialista em relação aos ensinamentos de Cristo tem se refletido também na falta de preparação de muitas pessoas que entram na igreja hoje. Ao desconhecerem a diferença entre o contexto religioso e social do Novo Testamento e o complexo mosaico filosófico, cultural e religioso de nossos dias, há aqueles que defendem a teoria de que hoje qualquer pessoa pode ser batizada e aceita como membro da Igreja Adventista após ter ouvido um único sermão (como o que Pedro pregou no Pentecostes, Atos 2), ou ter recebido um único estudo bíblico (como o que Felipe deu ao eunuco, Atos 8:26-40), ou inclusive haver ouvido um único hino (como o que Paulo e Silas cantaram na prisão, Atos 16:16-34). Para os adeptos desse novo modelo existencialista, qualquer pessoa que professar ter um relacionamento subjetivo com Cristo pode ser membro da igreja, independentemente de aceitar ou não as doutrinas do Senhor.

Séries de estudos bíblicos que pouco utilizam a Bíblia têm deixado os novos membros vulneráveis quanto ao seu conhecimento da Palavra. Sem ter desenvolvido um amor genuíno pela verdade bíblica e sem haver entendido a natureza profética do movimento adventista, acreditando ser ela apenas mais uma denominação evangélica que se diferencia vagamente das demais porque ainda acredita no sábado e na mortalidade da alma. É por essa razão que hoje encontramos muitos ex-adventistas em outras denominações cristãs. Como os novos convertidos poderiam ensinar a verdade aos outros se eles mesmos não aprenderam (Rm 10:13-15; Jr 48:10)?

Mas o uso esporádico e superficial das Escrituras não se reflete somente nos sermões e na preparação de um candidato ao batismo. Os programas de jovens de muitas de nossas igrejas perderam completamente de vista a importância central da Bíblia em sua programação. Estão mais concentrados na distração e no entretenimento. Tais programas já não oferecem oportunidades para que os jovens esclareçam suas dúvidas sobre as doutrinas e o estilo de vida que professam. O estudo sequencial da Bíblia e os concursos bíblicos são considerados hoje por muitos como atividades obsoletas e sem significado. Lamentavelmente nunca tivemos uma geração de adventistas tão superficial em seu conhecimento bíblico-doutrinal como a atual.

Restaurando a Base Bíblica de Nossa Mensagem

Como igreja e como indivíduos precisamos nos perguntar: É esse o tipo de adventismo existencialista que realmente queremos hoje? Não nos preocupa mais o grande número de apostasias de pessoas que nunca foram devidamente fundamentadas na mensagem adventista e que não muito tempo depois de seu batismo deixam nossas fileiras para unir-se a outras denominações? Não nos importa o fato de que estamos mais perto dos eventos finais que as gerações anteriores e, ao mesmo tempo, somos mais vulneráveis doutrinalmente que elas?

Hoje vivemos, como denominação, em um dos momentos mais críticos de nossa história, pois nunca havíamos enfrentado uma avalanche tão grande de críticas externas e internas como as que estão presentes em nossos dias, especialmente por meio de livros, artigos e sites na Internet. Se no passado as crises da igreja eram sucessivas e cíclicas, hoje reaparecem todas ao mesmo tempo, de forma simultânea e mais desafiantes. Como nunca “todo vento” de doutrinas falsas (Ef 4:14) está soprando. Será que com a superficialidade doutrinária de hoje os membros de nossas igrejas poderão enfrentar essa avalanche de críticas sutis e sofisticadas levantadas contra nós?

A conjuntura atual tem levado muitos adventistas a se perguntar até quando continuaremos ouvindo sermões que nos conduzem praticamente a nada e presenciando batismos de pessoas não comprometidas com a fé que professamos. Pessoalmente creio que esta problemática poderá ser revertida unicamente se buscarmos insistentemente o equilíbrio entre a relação com Cristo e o compromisso com Suas doutrinas, se voltarmos a estudar a Bíblia para entender seu conteúdo doutrinário, se deixarmos de nos envergonhar de pregar os temas fundamentais da fé adventista e prepararmos devidamente as pessoas para o batismo, se voltarmos a decorar as passagens bíblicas tais como os Dez Mandamentos, as Bem Aventuranças, as Três Mensagens Angélicas, etc., e se prepararmos nossos membros por meio de seminários de aprofundamento bíblico.

Meu interesse não está em Cristo sem Suas doutrinas, nem nas doutrinas sem Cristo, senão em Cristo com Suas doutrinas. Em outras palavras, jamais deveríamos transformar a relação com Jesus em um substituto das verdades bíblicas, nem exaltar as verdades bíblicas em detrimento da relação com Ele. Estamos nos aproximando rapidamente da maior crise entre a verdade e o erro de todos os tempos, e necessitamos desesperadamente de um conhecimento mais profundo “da verdade tal como é em Jesus”.

Deveríamos imitar mais de perto o exemplo deixado por Cristo em Sua relação com a verdade. “Em Seus ensinos, Cristo não sermonizava, como fazem os ministros atualmente. Sua tarefa era a de edificar sobre a estrutura da verdade. Ele ajuntou as preciosas pedras da verdade, de que o inimigo se havia apossado e colocado na estrutura do erro, recolocando-as na estrutura da verdade, para que todos os que recebessem a palavra fossem por ela enriquecidos” (Evangelismo, p. 57).

Considerações Finais

Creio que a superficialidade doutrinária que enfrentamos hoje é uma das estratégias satânicas mais importantes com o propósito de que não estejamos preparados para os eventos finais, e não possamos expor de forma convincente a base bíblica de nossas doutrinas. Se o abalo vier “pela introdução de falsas teorias” doutrinárias muitos acabarão deixando a fé adventista por não haver construído sua religião sobre o fundamento imóvel da Palavra de Deus (ver Mt 7:24-27; Is 40:8; Jo 17:17).

O Espírito de Profecia nos adverte: “[…] muitos hão de sair de nós, dando ouvidos a espíritos enganadores e a doutrinas de demônios. O Senhor deseja que toda alma que professa crer na verdade tenha um conhecimento inteligente do que seja a verdade. Levantar-se-ão falsos profetas e enganarão a muitos. Será sacudido tudo quanto possa ser sacudido. Não cumpre então a cada um compreender as razões de nossa fé? Em lugar de haver tantos sermões, deve haver mais acurado estudo da Palavra de Deus, abrindo as Escrituras texto por texto, e procurando as fortes evidências que apoiam as doutrinas fundamentais que nos trouxeram ao ponto em que nos encontramos hoje, sobre a plataforma da verdade eterna” (Evangelismo, p. 363).

Meu interesse não está em Cristo sem Suas doutrinas, nem nas doutrinas sem Cristo, senão em Cristo com Suas doutrinas. Em outras palavras, jamais deveríamos transformar a relação com Jesus em um substituto das verdades bíblicas, nem exaltar as verdades bíblicas em detrimento da relação com Ele. Estamos nos aproximando rapidamente da maior crise entre a verdade e o erro de todos os tempos, e necessitamos desesperadamente de um conhecimento mais profundo “da verdade tal como é em Jesus”.

 

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