Como desenvolver-se de tal maneira que aquilo que você faz surge daquilo que você é…
Por Dr. Berndt D. Wolter
Como a boca fala daquilo que o coração está cheio (cf. Mt. 12:34), as nossas mãos inevitavelmente irão fazer aquilo que o nosso coração pede (cf. Ap. 20:13) e os nossos pés nos levarão aos lugares que o nosso coração deseja (cf. Pv. 6:18). Se o coração está buscando o que é bom, as nossas ações serão semelhantes a essa busca. Na verdade o fruto vai sempre mostrar qual a qualidade da árvore, como diz a Bíblia: “pelos frutos os conhecereis…” (cf. Mt. 7:16).
A realidade é que inevitavelmente aquilo que fazemos flui a partir daquilo que somos, mesmo que saibamos disfarçar bem e saibamos dar a impressão de que somos aquilo que estamos falando ou fazendo. A mensagem daquilo que somos sempre fala muito mais alto do que aquilo que falamos ou fazemos.
O Ser
Em nossa cultura brasileira, avaliamos as pessoas pelo que elas têm ou pelo seu desempenho. Somos conhecidos e valorizados por aquilo que temos ou fazemos, e não por aquilo que de fato somos. É até esquisito falar de nosso ser.
Quando nos apresentamos para alguém, normalmente falamos o nosso nome e o que fazemos. Imagine se eu me apresentasse assim: “Olá, meu nome é Fulano, o propósito de Deus para a minha vida é ajudar pessoas a conhecê-lo. Sou humilde e paciente, mas tenho dificuldades em ter paz no coração. Meus dons são de evangelismo e de aconselhamento. Muito prazer!” Não é muito estranho para nós expormos o nosso ser dessa maneira?
Então vamos abordar o nosso tema: O que é esse ser? Como definir e delimitar o meu ser? Como definir e conhecer o ser de outros? Como esse ser se desenvolve? Qual é a finalidade de desenvolver o ser? Temos enfatizado o desenvolvimento de nosso ser de volta à imagem e semelhança de Deus? E o ser de outros?
O ser é aquilo que nos diferencia de outras pessoas, de outro ser. Claro que nossa aparência, nossa personalidade, nossa história pessoal e nosso jeito de ser, dão a marca distintiva para o que somos. Mas o ser é marcado principalmente por características interiores, veja Mt. 5; Gl. 5:22-23; 1 Co. 13. As marcas que distinguem nosso ser são a forma como amamos, onde estamos na escala de desenvolvimento da humildade, nossa habilidade de praticarmos bondade, etc.
Bem no início Deus fez Adão do pó da terra (cf. Gn. 2:7). Esse boneco de barro não teria nada que o diferenciasse de outro, que porventura Deus fizesse, a não ser o formato. Deus decidiu colocar nesse boneco um conteúdo. Esse conteúdo somado à parte física desse boneco é o ser.
De maneira maravilhosa Deus lhe deu vida (fôlego de vida em hebraico é RUAH) e esse boneco de barro passou a ser alma vivente. Essa alma vivente, de repente, tinha tudo: inteligência, emoções, vontade, espiritualidade, habilidade de se relacionar e de se socializar, livre arbítrio, capacidades e potenciais.1 Num milagre Deus fez de um boneco de barro um ser vivo.
Alguns versículos antes (cf. Gn. 1:28), quando a Bíblia se concentra na sequência da criação, Deus diz aos primeiros humanos: “Sede fecundos, multiplicai-vos”. As duas palavras (rabah e parah) tem a ver com a reprodução de indivíduos em quantidade e ser ou tornar-se grande. O sentido secundário dessa dupla de palavras é de ampliar, alargar, aumentar, dar frutos. Parece que, apesar de dar ênfase sobre a multiplicação numérica, nesse versículo há também a dimensão de se desenvolver, se ampliar interiormente. Mas, o que precisa se desenvolver?
Composição do ser
Nosso ser é integral, inseparável e as partes que iremos delimitar são aqui separadas didaticamente apenas para facilitar a explicação, pois dentro de nós não há partes nem separações, é um todo.
Como ser integral é que precisamos crescer: mente, corpo e espírito,2 como Deus nos criou, tudo interligado, tudo influenciando tudo. Nada se desenvolve sozinho. Apesar de prestarmos atenção nas partes, é no todo que o ser se desenvolve. Por exemplo, não há ninguém que se desenvolva bem mentalmente e seja saudável se não se dedicar ao desenvolvimento do corpo. Vamos ver como isso funciona.
Podemos analisar um quadro pintado, delimitarmos moldura, o pano sobre qual a pintura é feita e as diferentes tintas utilizadas. Tudo acaba sendo um quadro só e não faria sentido se tivéssemos apenas partes separadas. Assim podemos também estudar a composição do nosso ser apesar de ser um todo inseparável. Veja as partes:
O corpo é o físico: ossos, músculos, pelos, órgãos, etc. O corpo tem certa lógica de funcionamento, há certas leis que o regem. Se desconhecermos ou negligenciarmos o funcionamento do nosso corpo, o trataremos de maneira inadequada e, consequentemente, ele será prejudicado.
Não iremos entrar em detalhes aqui, mas o corpo precisa ser tratado adequadamente com alimento de qualidade, água, descanso, exercício, sol, ar puro, etc. Qualquer uma dessas características, se negligenciada, pode ser a origem de doenças e enfraquecimento do corpo. Quando utilizadas com equilíbrio, o corpo desenvolverá força, resistência, persistência e longevidade. O esporte é imprescindível para que o corpo esteja em sua melhor conformação. O trabalho útil é o que parece mais promover a interação do físico, mental e o espiritual, dando força ao conjunto. Nas palavras de Ellen White: “a ocupação da mente e do corpo num trabalho útil é essencial como salvaguarda contra a tentação” 3.
A mente é composta por emoções, razão e vontade.
A razão é onde os pensamentos acontecem. É composta por lógica, raciocínio, criatividade, concentração, memória, associação de ideias, etc.
As emoções são os movimentos internos que, em grande medida, dão significado para a nossa vida. Avaliamos muito daquilo que nos confrontamos diariamente pelas emoções que sentimos. Antipatias e simpatias por pessoas são muitas vezes estabelecidas com base nas emoções. As emoções básicas segundo a ciência psicológica são: culpa, ódio, vergonha, medo e amor. Há ainda outras emoções como alegria, tranquilidade, satisfação, equilíbrio, etc.
Toda a nossa saúde psicológica vem da nossa habilidade de lidar com a realidade das nossas emoções e de vivê-las conscientemente. A interação adequada da razão com as emoções possibilita à nossa estrutura psicológica um estado saudável e reações que estão de acordo com a realidade. As emoções também são, somadas à razão, a base para as nossas decisões.
A vontade é uma interação entre emoções e razão, a qual é difícil de ser exatamente delimitada. Há momentos que fazemos as nossas decisões quase que inteiramente baseadas nas emoções e outras vezes gastamos tempo para refletir e tomar uma decisão estudada, com compreensão das consequências, baseada na razão. Ellen White escreve: “Este é o poder que governa a natureza do homem, o poder da decisão ou de escolha. Tudo depende da reta ação da_vontade. O poder da escolha deu-o Deus ao homem; a ele compete exercê-lo” 4. Exercer essa característica da mente com sabedoria e emoções sadias, que não traiam a escolha inteligente, é talvez o que mais pode determinar o rumo de uma vida.
A espiritualidade, por sua vez, segue uma lógica diferente dessas duas dimensões anteriores do ser. Ela é regida por aquilo que não vemos e que não podemos medir pelos nossos sentidos (cf. 2 Co. 4:18).
Em seu primeiro sermão, Jesus mostra o que é essencial para o ser humano se desenvolver na direção de Deus e apresenta os elementos básicos que compõem a espiritualidade: humildade, mansidão, simplicidade, justiça, limpeza de coração, misericórdia, paz, etc. Todas essas qualidades são invisíveis e imensuráveis.
Paulo, em Gálatas 5:22-23, repete essas características invisíveis da espiritualidade e as de_ ne como sendo o próprio AMOR. Ele descreve assim: “O fruto do espírito é AMOR: alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio” 5. Paulo também faz um paralelo poético (talvez tenha sido até um hino) ao texto anterior em 1 Co. 13 onde repete quase a mesma coisa e expande o conceito de que o centro da espiritualidade é o AMOR, descrevendo os componentes desse AMOR vindo de Deus (cf. 1 Jo. 4:19).
Em outras palavras, se alguém quer aprender a amar, deve investir em aprender a viver as partes que compõem o amor. Ao crescer em alegria, paciência, bondade, a pessoa cresce em AMOR e, consequentemente, em espiritualidade.
O ser é a combinação saudável de três áreas: físico, mental e espiritual. Existe alguma fórmula mágica para essas três áreas interagirem de maneira saudável? Há uma receita para funcionarmos perfeitamente como seres humanos? Não! Mas existem princípios gerais norteadores, que se aplicam a todos os seres humanos. A compreensão e a vivência deles em equilíbrio, inteligência e bom senso, bem como o constante crescimento e ajuste nas áreas onde percebemos debilidade, são o segredo do desenvolvimento constante do ser.
Um ser doente
O desenvolvimento integral do ser é chamado na Bíblia de santificação, sem a qual ninguém verá a Deus (cf. Hb. 12:14). Precisamos aprender a desenvolver essas características da mente, do corpo e do espírito. Se Deus nos deu um ser com essa complexidade, foi para que esse ser fosse desenvolvido. Se negligenciarmos isso, teremos decadência e adoecimento como resultado. Muitas vezes o adoecimento em uma área é responsável pelo adoecimento de todo o ser.
Por exemplo, se uma criança foi abusada quando pequena, ela foi ferida em suas emoções e, consequentemente, toda a sua psique está abalada. Ao estar doente psicologicamente, é possível que o seu rosto e o seu corpo mostrem esse desajuste ao longo do tempo. Também é provável que ela desenvolva doenças anos depois, não pelo abuso em si, mas pelas lutas emocionais que vai ter com as lembranças, ou mesmo com o esquecimento do abuso. Os seus relacionamentos de adulto provavelmente irão sofrer e/ou ficarão marcados por toda a vida. Essa pessoa precisa se abrir com alguém e estar num ambiente seguro para poder tratar das feridas emocionais, caso contrário, o episódio da infância, mesmo não sendo culpa da pessoa, vai impedir sua saúde integral.
Uma pessoa sem uma experiência significativa e relevante com Deus, que não se desenvolve espiritualmente, pode sofrer ao longo da vida de tal maneira que o corpo e a mente (razão, emoções e vontade) sofrerão juntos. Os efeitos nunca são diretos e nem diretamente mensuráveis, mas estarão ali debilitando todo o ser. A vida fica parcialmente comprometida.
Outro exemplo é o de uma pessoa que não quer se desenvolver mentalmente, ela vai ser agente e vítima de limitações que afetarão o ser todo. Uma pessoa que não instrui a razão fica não apenas desinformada, mas inconsciente de muita coisa que ocorre ao seu redor. Sem instrução, uma pessoa restringe demasiadamente seus círculos sociais e oportunidades que Deus poderia lhe oferecer. O potencial que Deus apresenteou para ser desenvolvido fica restrito aos impulsos que vêm de fora, produzidos por outras pessoas.
Quando a pessoa não se desenvolve, os potenciais que Deus deu ficam sem ser desenvolvidos, o serviço que a pessoa poderia exercer não é realizado e o propósito de Deus para aquela vida fica frustrado.
O fazer inteligente
Exagerando a cena, se tomarmos uma multidão de doentes (física, psicológica, metal, social e/ou espiritualmente) e animá-los a fazer uma obra que não estão capacitados a fazer, é possível que façamos mais mal do que bem. Será que o que estou querendo dizer aqui é que apenas pessoas completamente ajustadas, completamente sadias física, mental e espiritualmente devem sair para trabalhar para o Senhor? Não! Definitivamente não!
Sempre há dois lados de uma ação, aquele que dá e aquele que recebe o serviço prestado. Na ponta que recebe, o bem é limitado quando as pessoas que prestam o serviço de amor não estão preparadas para fazê-lo. Nas palavras de Ellen White: “em vão se esforçam por cumprir uma obra para a qual estão despreparados, enquanto aquela que podem fazer continua negligenciada. E por causa desta falta de cooperação de sua parte, o trabalho maior é impedido ou frustrado” 6.
Há, no entanto, o efeito reflexo sobre quem se dispõe a servir: “Todo raio de luz espargido sobre outros, refletir-se-á em nosso próprio coração. Toda palavra bondosa e compassiva que se dirija a um aflito, toda ação praticada para aliviar um oprimido, e toda dádiva que se destina a suprir as necessidades de nossos semelhantes, dada ou feita tendo em vista a glória de Deus, resultará em bênçãos para o doador. Aqueles que assim trabalham, estão obedecendo a uma lei do Céu, e hão de receber a aprovação de Deus. […] O prazer de fazer bem a outros, comunica aos sentimentos um ardor que eletriza os nervos, vivifica a circulação do sangue, e produz saúde física e mental” 7.
O ponto que eu quero chegar é que quando empreendemos ações que não fazem sentido aos que nelas estão envolvidos, perde-se uma dimensão inteira, mas quando há o mínimo de preparo, a ação é boa tanto para quem recebe como para quem a pratica, e coopera para o desenvolvimento das duas partes.
Os dois lados
Por um lado, vamos inevitavelmente fazer a partir daquilo que somos. Essa é uma lei invariável. Isso exige que façamos investimentos consideráveis nos membros da igreja, para que se desenvolvam e cresçam. Uma percepção mágica da religião e daquilo que Deus quer fazer está fora de lugar e não ajuda aquele que presta o serviço, e aquele que o recebe fica confuso.
O serviço instruído, com pessoas preparadas (não perfeitas, já que isso não existe), que entendem o seu crescimento e o de outros, que estão empenhadas em seu desenvolvimento físico, mental e espiritual e que poderão prestar um serviço muito mais elevado beneficiará muito mais a ponta receptora, pois não são emitidas mensagens confusas.
Por outro lado, o serviço pode e deve ajudar as pessoas em seu desenvolvimento pessoal. É infantil e imaturo pressupor que todos estão prontos, capazes, dispostos e com a correta motivação. No entanto, envolver as pessoas explicando-lhes como aquele serviço vai influenciar em seu desenvolvimento é sábio e coerente com o plano de Deus. Mais ainda, quando as pessoas entenderem que elas estão em desenvolvimento do seu ser, entenderão melhor aqueles a quem estão servindo e como aquilo que estão fazendo contribuirá para o desenvolvimento das pessoas a quem estão servindo.
O Pastor é Berndt Wolter é doutor em Teologia pela Andrews University e desde 2007 tem servido como professor de Teologia Aplicada do SALT UNASP
Notas e Referências bibliográficas:
1 Deus criou nossos primeiros pais com todas essas características interiores, capacidades e potenciais com uma estrutura básica capaz de ser desenvolvida. O ser humano teria participação em seu crescimento e desenvolvimento como ser.
2 Perseguimos a compreensão bíblica aqui de espírito, não alguma invasão da filosofia grega ou religião pagã. Espírito é a centelha de vida em nós colocada por Deus e que volta a Deus quando morremos. Não defendemos a ideia de um ser invisível e imortal que habita o corpo.
3 WHITE, Ellen Gould. Ciência do Bom Viver. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2002, p. 177.
4 WHITE, Ellen Gould. Caminho a Cristo. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2004, p. 47.
5 Ver em http://espiritualidade.numci.org/o-miolo-da-espiritualidade/
a análise do texto de Gl. 5:22-23.
6 WHITE, Ellen Gould. Patriarcas e Profetas. Tatuí, SP: Casa
Publicadora Brasileira, 2003, p. 713.
7 WHITE, Ellen Gould. Serviço Cristão. Tatuí, SP: Casa
Publicadora Brasileira, 2001, pp. 270-271.